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dezembro 10, 2023

UMA SOCIEDADE DE URTIGÕES

NILO Emerenciano – Arquiteto e escritor Por volta de 2008 o psicólogo Fernando Braga da Costa sentiu na pele a dureza da invisibilidade social.

Padre Júlio Lancellotti quebra pedras instaladas pela Prefeitura de São Paulo sob o viaduto Dom Luciano Mendes de Almeida

NILO Emerenciano - Arquiteto e escritor

Por volta de 2008 o psicólogo Fernando Braga da Costa sentiu na pele a dureza da invisibilidade social. Vestiu a roupa laranja de um gari e trabalhou no campus da USP varrendo as ruas. Seu relato impressiona.

Garis não são vistos pelos transeuntes

Os professores ou colegas esbarravam com ele e não o viam quando vestindo a farda de gari. - Nunca recebi um bom dia, diz, me sentia um poste ou um orelhão. Simplificando, os pobres, os malvestidos, os
trabalhadores braçais, os excluídos, enfim, não são vistos pelos transeuntes, seja intencionalmente ou não.

Ninguém vê as pessoas nos canteiros das avenidas ou sob as marquises, as dezenas de famílias que em todos os anos, no período natalino, ocupam as ruas em barracos improvisados. Olhamos por cima, altaneiros. São invisíveis para nós.

Agora a coisa assume ares mais preocupantes ainda. Surge uma chamada Arquitetura Hostil em vários locais do mundo. Eu chamaria arquitetura de exclusão ou da desumanidade.

Do que estou falando?
Ouvi falar disso pela primeira vez em 2021 quando a prefeitura de São Paulo instalou peças de concreto sob o viaduto Dom Luciano Mendes de Almeida para evitar que os sem teto ali buscassem abrigo. O ato passaria em branco não fosse a atitude do padre Júlio Lancelotti que, marreta à mão, quebrou aquelas pedras – que ele chamou pedras da injustiça - em um gesto de justa indignação.

Arquitetura hostil são barreiras criadas para afastar os indivíduos dos espaços públicos, como indesejáveis. Isso é feito com bancos de praça ondulados ou inclinados, interrompidos ou inclinados de forma a não permitir que os moradores de rua ali se deitem, pedras embaixo dos viadutos, grades cercando praças e parques, soleiras das lojas das lojas com pontas metálicas ou feitos de material
áspero. Enfim, tudo feito para excluir mais ainda os já excluídos.

Tudo isso vai na contramão do que deveria ser uma cidade humanizada. Castro Alves em poema afirmava que a praça é do povo como o céu é do condor. Caetano parodiou: “A praça Castro Alves é do povo/ como o céu é do avião”. Por povo, claro, ambos querem dizer todos, sem exclusão.

Fala-se em aporofobia. Ou seja, aversão aos pobres. Aquele bordão de Caco Antunes que fazia rir no programa Sai de Baixo – detesto pobres – tornou-se natural. Havia indícios dramáticos, como quando há vinte anos, em Brasília, jovens de classe média puseram impiedosamente fogo no índio Galdino Pataxó, pelo simples fato de e existir.

Nos meus 17 anos, na esquina da rua Felipe Camarão com a Juvino Barreto, havia uma minúscula barbearia pertencente a Chico Barbeiro. Ali ele trabalhava e também dormia. O batente da porta tinha a altura perfeita para a garotada sentar-se pra conversar potoca, o que, claro, incomodava o sono do velho barbeiro. Aí Chico tornou-se o precursor, acho, da arquitetura hostil, pois ele preparava uma mistura de
óleo queimado e outras porcarias e aplicava aquilo na soleira. Pobre de quem se sentasse naquele lambuzado. Algumas bundas sujas depois deixaram Chico Barbeiro em paz.

Conversas de vizinhos na calçada

Vocês talvez não lembrem, mas a rua era ambiente de convivência, de cadeiras nas calçadas, namoro no portão, jovens nas esquinas, crianças brincando de garrafão ou de tica-cola. Os muros altos e extensos, sem elementos vazados, tornaram a pública um ambiente inseguro e desagradável para os transeuntes, pois na verdade, a existência de pessoas transitando nas calçadas e ruas da cidade é que as faz
seguras e não o contrário.

Me preocupa sobremaneira a insensibilidade dos profissionais de arquitetura e planejadores urbanos que se prestam a esse tipo de trabalho. Lembra a arquitetura da Idade Média, castelos de paredes grossas, cercados por fossos, seteiras, locais por onde se jogar óleo fervente. E há pessoas que afirmam, ufanas: - Minha casa é meu castelo. Pois é. Esquecem que o castelo era uma praça de armas, uma fortificação
contra os invasores.

Nossas casas não devem ser isso. Devem ser abrigos, albergues, acolhedores para com todos, como acolhedores devem ser os nossos corações. E as cidades, com certeza.

Ou vamos nos tornar todos Urtigões, lembram? Aquele personagem das revistas do Pato Donald, solitário, barbudo e com uma espingarda de dois canos nas mãos, ameaçando a todos que se aproximavam do seu sítio?

Talvez seja isso que merecemos pela nossa apatia. Uma sociedade de Urtigões.

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