RIBEIRA REVISITADA

junho 15, 2025

NILO Emerenciano – Arquiteto e escritor Do bairro da Ribeira sobrevive em mim o interior da Igreja do Bom Jesus das Dores, o altar principal ostentando um Cristo crucificado de um realismo que chega a chocar.


NILO Emerenciano - Arquiteto e escritor

Do bairro da Ribeira sobrevive em mim o interior da Igreja do Bom Jesus das Dores, o altar principal ostentando um Cristo crucificado de um realismo que chega a chocar. A imagem de São Judas Tadeu, na capela lateral, o corpo do Nosso Senhor morto em um esquife de vidro embaixo do altar da capela da ala direita.

Interior da Igreja Bom Jesus das Dores

Esse corpo era exibido na passagem central da nave durante a semana santa, ocasião em que eram feitas filas para pessoas esfregarem cédulas por braços e pernas do Salvador. O cheiro de velas. As missas em latim (sim, sou desse tempo). Miserere nobis, ora pro nobis. Permanecem também, no canguleiro que sou, a Avenida Tavares de Lira, seu obelisco, o pequeno cais de onde saiam as lanchas e barcos que faziam o transporte para a Redinha, logo ali, do outro lado do Rio Potengi.

A Agência Pernambucana de seu Luís Romão, dono também desses barcos, onde íamos ver as últimas revistas do Zorro e Tarzan. As ruínas esfumaçadas da Loja 4400, destruída por um incêndio. A Peixada Potengi, frequentada por jornalistas da Tribuna do Norte, boêmios e prostitutas em fim de expediente, a partir das duas da manhã.

O bar de Araújo, onde vi Sílvio Caldas, simpático e conversador. A barbearia de Carlinhos, exímio fabricante de botões. O Carneirinho de Ouro. O Armazém Potiguar. Da Rua Doutor Barata, que a minha tia dizia “Doutor, aquele Bichinho” por causa de um medo extremado do inseto. Ficaram em minha memória afetiva, duas livrarias: a Ismael Pereira e a Livraria Lima, de seu Lima, pai de Carlinhos, da futura gráfica.

Arpége, cabaré de fama - Foto: Brechando

O barbeiro Batista, na Travessa Venezuela, praticamente em frente ao Arpége, cabaré de fama. Batista cortava cabelos cantando pontos de Umbanda. Vez em quando parava o corte para levantar o assento da cadeira e atender alguém. Dentro guardava relógios, anéis e outras joias. Depois, entendi que ele se virava fazendo penhor para uma clientela comprometida.

Da Rua Chile guardo o Centro Náutico e o Sport, de Ricardo Cruz e Clodoaldo Baker, heróis da travessia Natal-Rio de Janeiro em uma iole, mais de 2000 km naquela coisinha frágil, coisa pra Almir Klink nenhum botar defeito. De minha parte, modestamente, remava em um barquinho chamado Pixote, que a gente (eu e Luís Bezerra Júnior, o Picolino) alugava e saia remando Potengi afora.

Rua Chile - Foto: Tribuna do Norte

Da Ribeira vive fortemente em mim o Teatro Alberto Maranhão e seus porteiros. Eram cúmplices da nossa entrada sorrateira por uma porta lateral. Assim, tive a oportunidade de assistir O Santo e a Porca e o Santo Inquérito, ambos dirigidos por Sandoval Wanderley. Vi Terras de Arisco e Senhora Carrapicho, de Meira Pires, belas montagens com cenários maravilhosos. Vi Um whisky para o Rei Saul, Diário de um Louco, Doces Deleites, Marcelino Pão e vinho no Céu, o espetacular Macunaíma, Augusto dos Anjos,Poeta e Cidadão Brasileiro e Esperando Godot, com Eva Wilma.

Isso, o que a memória alcança. Os espetáculos do Projeto Pixinguinha, o Seis e Meia, tanta gente maravilhosa, inclusive Nana Caymmi que "viajou" agora há pouco. Vi Gilberto Gil em um show super intimista. Gal, Nara, Elis e o Zimbo Trio, Ângela Rô-rô, Miúcha, Braguinha, João Donato, Arrigo, João Nogueira, a Camerata Carioca, Leila Pinheiro… eita, ótimos tempos!

Teatro Alberto Maranhão Foto: ipatrimônio

Ao lado do Teatro, o Colégio Salesiano São José, na época dirigido por padres que também eram boa parte dos professores. Padres Tadeu, Mário Daorizi, Natal, Amadeu, Valdir, Tenório, que cuidava da horta, Falcone. Alguns amarravam a batina nas pernas e vinham jogar bola com a meninada. O espaço, antiga casa do industrial Juvino Barreto, era uma maravilha por si só. Imensos corredores, escadas antigas, de madeira, três campos de futebol, mangueiras, altas e altaneiras palmeiras imperiais.

Colégio Salesiano São José- Foto: Agora RN

Na praça todo tipo de vendedores. Roletes de cana, sonhos, amendoim torradinho, geleia de coco, pirulitos, sorvetes, picolés, laranjas descascadas em uma maquininha. Nosso rico dinheirinho ficava ali mesmo. Resistir, quem há de? Além disso, a Praça Augusto Severo ainda dispunha de uma mini biblioteca ali colocada por Djalma Maranhão, o prefeito mais atuante que a cidade já teve. Amigo e apoiador dos
grupos folclóricos, nem parecia os gestores de hoje, longe disso.

E o Grande Hotel? Tantas histórias naqueles alpendres. Tantos personagens ao longo dos anos. O major Teodorico Bezerra recebendo correligionários e autoridades. O restaurante maravilhoso, o piano de Paulinho Lira. A barbearia, com uma manicure de belas pernas.

Vindo da escola para casa o cheiro que emanava da cozinha comandada por Santana estimulava meu apetite. Na outra esquina era o restaurante do SAPS, popular, com longas filas. A Confeitaria Delícia, do português Olívio, teve seus dias de glória. Na parede, um desenho de Newton Navarro representando barqueiros do Tejo.

No sábado, as mesas eram colocadas na rua para tornar possível a limpeza. Dizem que ali nasceu o termo “saideira”. Cansado de esperar, um visitante foi ao bar chamar o seu anfitrião. - Isso não termina nunca? Perguntou. - Terminamos faz tempo, foi a resposta. É que estamos na décima saideira…

Revisitando o bairro da Ribeira me vejo no menino que fui. As ruas, becos e vielas que percorri no bairro e na vida. Drummond fala: de tudo fica um pouco. Da Ribeira, em mim, ficou muito, na cabeça e no coração.

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