O mundo anda tão complicado

outubro 22, 2023

Cefas Carvalho -Jornalista e escritor Um casal querido, da qual eu fui cupido, e está em processo de “juntar as escovas de dentes” mandou um vídeo com eles limpando a casa nova que alugaram juntos e instalando fogão, geladeira, etc e tal.

Cefas Carvalho -Jornalista e escritor

Um casal querido, da qual eu fui cupido, e está em processo de “juntar as escovas de dentes” mandou um vídeo com eles limpando a casa nova que alugaram juntos e instalando fogão, geladeira, etc e tal. Fiquei feliz com as imagens e imediatamente lembrei de uma música de Renato Russo, gravada pelo Legião Urbana no álbum “V”, que relata justamente um casal arrumando a nova casa:

 “Temos que consertar o despertador
E separar todas as ferramentas
Que a mudança grande chegou
Com o fogão e a geladeira e a televisão

Não precisamos dormir no chão
Até que é bom, mas a cama chegou na terça
E na quinta chegou o som…”


Porém, pouco depois de receber o vídeo do casal, recebi pelo zap notícias da tragédia humanitária na Faixa de Gaza. Mais mortos e feridos e Israel bombardeando cidades palestinas e sem qualquer indicativo de cessar fogo. A coisa piorou ainda nesta terça-feira, quando vimos um hospital bombardeado, tudo indica que por Israel, que havia ordenado a evacuação do local, com quase mil mortos, muitos deles crianças e mulheres.  Uma tragédia humanitária, um horror que se assemelha a um genocídio, já que não se pode chamar de guerra um conflito na qual somente um dos lados possui um exército e é uma nação oficialmente reconhecida.

Mas há complexidades nisso tudo. Da mesma forma que o grupo, terrorista, diga-se, Hamas, não representa o povo palestino, o povo israelense não é sinônimo do governo de extrema-direita de Benjamin Netanyahu, primeiro-ministro de Israel eleito com pequena diferença e que é alvo de críticas pesadas de grande parte da população e da mídia por levar mais violência ao país e usar de métodos semelhantes aos usados pelo regime nazista contra justamente os judeus.

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Isso sem falar nas nuances econômicas (petróleo na região), geopolíticas (EUA interferindo, judeus cercados por países islâmicos), históricos (reparação aos judeus após a II Guerra), religiosas (dois povos que acham que a mesma terra é deles por direito divino).

E tudo isso com o conflito entre Rússia e Ucrânia ainda acontecendo e após uma pandemia. Sim, o mundo anda tão complicado. Mas, infelizmente, não para o internauta médio brasileiro que vê a vida e a realidade como um Fla x Flu, ou um filme da Marvel, com heróis e vilões facilmente identificáveis e um “lado” para torcer. 

Esse maniqueísmo possivelmente foi ampliado durante os quatro anos de governo fascista que corroeu as instituições, retirou direitos e promoveu uma absurda e abstrata “guerra cultural” que, justamente, divide o mundo entre “bem” e “mal” (onde eles são o “bem”, claro) sem qualquer tipo de observação complexa. Para esse pessoal o mundo não é nada complicado já que eles têm respostas e verdades absolutas para tudo. Até hoje sigo o conselho de Hemingway, de sempre desconfiar de pessoas que acham que tudo é muito simples. Mas isso é tema para um outro texto.

De resto, nos sobra esperar que ONU ou mais possivelmente EUA, Rússia e Europa, mais pela pressão do que pela vontade de seus governantes, negociem um cessar fogo. Sempre é bom lembrar também que numa guerra as maiores vítimas sempre são civis e gente inocente que jamais pegou em uma arma. Para citar outra canção de Renato Russo, “o senhor da guerra não gosta de crianças”. Esse deve, ou deveria, ser o prisma para criticarmos os conflitos bélicos sem paixões ou arrebatamento ideológico: evitar o derramamento de sangue inocente. Embora saibamos qual lado tem mais força e oprime o outro lado a mais tempo.

No mais, mesmo com o mundo complicado e a dificuldade em soluções coletivas, temos de celebrar as pequenas conquistas e alegrias do dia a dia, como na casa nova do casal de amigos. O próprio escritor israelense Amós Oz, dos meus preferidos, que conhecia bem a Faixa de Gaza, era pacifista e criticava o conflito entre os dois povos e a voracidade de Israel, afirmou uma vez em um ensaio que mesmo em meio à guerra é preciso beber café, olhar o pôr do sol, flertar com a moça na janela, enfim. Seria a paz em separado, como escreveu Hemingway no final de “Adeus às armas”. Enquanto esperamos, com algum pessimismo e ceticismo, a paz coletiva.

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