O mundo anda tão complicado
Cefas Carvalho -Jornalista e escritor Um casal querido, da qual eu fui cupido, e está em processo de “juntar as escovas de dentes” mandou um vídeo com eles limpando a casa nova que alugaram juntos e instalando fogão, geladeira, etc e tal.

Cefas Carvalho -Jornalista e escritor
Um casal querido, da qual eu fui cupido, e está em processo de “juntar as escovas de dentes” mandou um vídeo com eles limpando a casa nova que alugaram juntos e instalando fogão, geladeira, etc e tal. Fiquei feliz com as imagens e imediatamente lembrei de uma música de Renato Russo, gravada pelo Legião Urbana no álbum “V”, que relata justamente um casal arrumando a nova casa:

“Temos que consertar o despertador E separar todas as ferramentas Que a mudança grande chegou Com o fogão e a geladeira e a televisão Não precisamos dormir no chão Até que é bom, mas a cama chegou na terça E na quinta chegou o som…” Porém, pouco depois de receber o vídeo do casal, recebi pelo zap notícias da tragédia humanitária na Faixa de Gaza. Mais mortos e feridos e Israel bombardeando cidades palestinas e sem qualquer indicativo de cessar fogo. A coisa piorou ainda nesta terça-feira, quando vimos um hospital bombardeado, tudo indica que por Israel, que havia ordenado a evacuação do local, com quase mil mortos, muitos deles crianças e mulheres. Uma tragédia humanitária, um horror que se assemelha a um genocídio, já que não se pode chamar de guerra um conflito na qual somente um dos lados possui um exército e é uma nação oficialmente reconhecida.
Mas há complexidades nisso tudo. Da mesma forma que o grupo, terrorista, diga-se, Hamas, não representa o povo palestino, o povo israelense não é sinônimo do governo de extrema-direita de Benjamin Netanyahu, primeiro-ministro de Israel eleito com pequena diferença e que é alvo de críticas pesadas de grande parte da população e da mídia por levar mais violência ao país e usar de métodos semelhantes aos usados pelo regime nazista contra justamente os judeus.

Isso sem falar nas nuances econômicas (petróleo na região), geopolíticas (EUA interferindo, judeus cercados por países islâmicos), históricos (reparação aos judeus após a II Guerra), religiosas (dois povos que acham que a mesma terra é deles por direito divino).
E tudo isso com o conflito entre Rússia e Ucrânia ainda acontecendo e após uma pandemia. Sim, o mundo anda tão complicado. Mas, infelizmente, não para o internauta médio brasileiro que vê a vida e a realidade como um Fla x Flu, ou um filme da Marvel, com heróis e vilões facilmente identificáveis e um “lado” para torcer.
Esse maniqueísmo possivelmente foi ampliado durante os quatro anos de governo fascista que corroeu as instituições, retirou direitos e promoveu uma absurda e abstrata “guerra cultural” que, justamente, divide o mundo entre “bem” e “mal” (onde eles são o “bem”, claro) sem qualquer tipo de observação complexa. Para esse pessoal o mundo não é nada complicado já que eles têm respostas e verdades absolutas para tudo. Até hoje sigo o conselho de Hemingway, de sempre desconfiar de pessoas que acham que tudo é muito simples. Mas isso é tema para um outro texto.
De resto, nos sobra esperar que ONU ou mais possivelmente EUA, Rússia e Europa, mais pela pressão do que pela vontade de seus governantes, negociem um cessar fogo. Sempre é bom lembrar também que numa guerra as maiores vítimas sempre são civis e gente inocente que jamais pegou em uma arma. Para citar outra canção de Renato Russo, “o senhor da guerra não gosta de crianças”. Esse deve, ou deveria, ser o prisma para criticarmos os conflitos bélicos sem paixões ou arrebatamento ideológico: evitar o derramamento de sangue inocente. Embora saibamos qual lado tem mais força e oprime o outro lado a mais tempo.
No mais, mesmo com o mundo complicado e a dificuldade em soluções coletivas, temos de celebrar as pequenas conquistas e alegrias do dia a dia, como na casa nova do casal de amigos. O próprio escritor israelense Amós Oz, dos meus preferidos, que conhecia bem a Faixa de Gaza, era pacifista e criticava o conflito entre os dois povos e a voracidade de Israel, afirmou uma vez em um ensaio que mesmo em meio à guerra é preciso beber café, olhar o pôr do sol, flertar com a moça na janela, enfim. Seria a paz em separado, como escreveu Hemingway no final de “Adeus às armas”. Enquanto esperamos, com algum pessimismo e ceticismo, a paz coletiva.
