ARTIGO: ÉTICA TEOLÓGICA E TEOLOGIA PÚBLICA

agosto 13, 2021

Pe.

Pe. Matias Soares - Pároco da paróquia de Santo Afonso M. de Ligório/Natal-RN.

Um dos desafios contemporâneos para a teologia é o seu reconhecimento como ciência que tem um objeto e método próprios, com sua relevância para os outros campos do saber, especialmente para as ciências humanísticas. O problema é próprio da modernidade. Até o período medieval, em que a filosofia era tida como a “serva da teologia”, esta por sua vez, sendo a ciência que tendo Deus por objeto, assumia o protagonismo nos demais campos do saber, já que o teocentrismo será a marca determinante de todos os meios do conhecimento e da constituição da cultura.

Alguns acontecimentos que surgem entre os séculos XV-XVIII demarcaram a entrada em uma nova fase da história, que será a modernidade: a Imprensa, a Reforma Protestante, a Descoberta da América, o Renascimento até a chegada do Iluminismo, a Revolução Francesa até a ênfase dada ao Protagonismo do Sujeito e a descoberta do Método Científico. Em tudo isto estará concebida a centralidade do sujeito como medida de todas as coisas - antropocentrismo -, como Senhor da cultura e da ciência. Com isto, é posta no seu lugar próprio, ou de periferia, a importância da teologia, que na Era da Cristandade era a base centrífuga das demais ciências.

A própria teologia, internamente, sofreu alterações com a mudança de paradigma que chegou com a modernidade. As disciplinas teológicas também assumiram caminhos separatistas. O método começou a definir as linhas de síntese das disciplinas teológicas. O Concílio de Trento, mesmo sistematizando a doutrina católica a partir da reafirmação da doutrina sobre os sacramentos e da justificação, ordenou à teologia moral o caminho da casuística, ou seja, da consideração do agir cristão a partir dos princípios, que eram os mandamentos da Lei de Deus e outros preceitos eclesiais, para os casos específicos. A positivação da ética cristã determinava a formação das ações sem uma atenção específica aos ditames da consciência, principalmente pela via do sacramento da confissão.

As mudanças portadas pela modernidade trarão anseios sociais ainda mais relevantes com a urgência da recepção dos ideais progressistas. Os elementos considerados ainda pela companhia da valorização da tradição cedem lugar para o que a razão, que tomou cada vez mais distância da fé, é capaz de concretizar. As inovações científicas transformam a nova ordem sistêmica de modo determinante. O homem agora torna-se capaz de ‘matar Deus’. A Revolução Industrial é o fenômeno que diz a nova visão do que de fato é importante para a humanidade. O paradigma tecnocrático é formalmente concebido como a nova medida de construção da vida social. O seu referencial é a dinâmica da Revolução Industrial e suas consequências para o novo ordenamento social, que trás para o urbano a sua fisionomia.

Com estas progressões sociais, culturais, econômicas e antropológicas, a vida eclesial sofre transformações. As adaptações teológicas começam a ser necessárias. Os olhares das águias desta ciência que tratam das formas de Deus ser e falar ao mundo existente, também se voltam para as questões antropológicas, já que estas já passaram a ser relevantes desde o inicio da modernidade e que, por sua vez, relegou ao passado o tempo da cristandade, no qual a Igreja determinava o que existia por cultural. Agora essa mesma Igreja é chamada a ‘moderar-se para dialogar’ com a cultura e os novos valores impostos por ela.

O Concílio Vaticano II é o acontecimento eclesial por excelência do sec. XX. A partir de uma lógica teológica, podemos afirmar que é um evento de fundamental importância para o mundo ocidental. Pois, a Instituição que durante quase dezesseis séculos produzia ou entrava em choque com as construções culturais da civilização ocidental, agora abria suas portas para manter diálogo com as elaborações científicas, políticas e éticas da nova Era, que podemos chamar de moderna para pós-moderna. Os grandes movimentos antropológicos e geopolíticos causados pelas duas grandes guerras foram determinantes para compreendermos essas reviravoltas. É nessa linha que somos chamados a situar o balanço feito pelas tentativas de adaptação da teologia e seu novo estilo paradigmático das suas disciplinas, e dentre elas a que está em questão que é a ‘ética teológica’, como aquela que passa a ter um papel de grande relevância nos colóquios internos da vida da Igreja e sua desafiadora tarefa no debate público.

Seguindo as pegadas do Concílio Vaticano II, passando pela Evangelii Nuntiandi (PP VI), as Conferências Latino-americanas (Medellin, Puebla, S. Domingo e Aparecida), o PP Francisco, na sua programática Exortação Apostólica A Alegria do Evangelho sobre o anúncio do evangelho no mundo atual, expõe no IV capítulo desta carta ‘A dimensão social da evangelização’. Essa é, em sentido amplo, o que a Igreja tem como via para apresentar à sociedade e no espaço público, ou grandes areópagos, as grandes elaborações da ética teológica que visam oferecer ao mundo contemporâneo e a sua cultura proposições de razoabilidade que mostram perspectivas humanísticas sempre relevantes e de sentido existencial profundo para os dramas sempre inquietantes da condição humana de todos os tempos.

O Pontífice, já no número 176, citando a EN (PP VI), afirma que “Evangelizar é tornar o Reino de Deus presente no mundo. ‘Nenhuma definição parcial e fragmentada, porém, chegará a dar razão da realidade rica, complexa e dinâmica que é a evangelização, a não ser com o risco de empobrecê-la e até mesmo de mutilá-la’”. Os fundamentos da ética teológica cristão são indissociáveis do que é proposto como ethos, estilo e normatividade próprios da existência cristã. As disciplinas teológicas têm como linhas de projeção essa necessidade formal da teologia como um todo (Optatam Totius, 16). A própria Sagrada Escritura é posta como a ‘alma de toda a teologia’.

O que é encontrado no desenrolar dos intentos dialógicos das ciências humanas e as teológicas, como estamos tendo a intenção de propor, está na questão antropológica. É no humano, no existencial, no histórico que a condição humana, pública e privada, se encontra e pode dialogar com racionalidade, na consideração da ética teológica como disciplina que, mesmo sendo teológica, tende a responder às ‘crises’ causadas pelas desconstruções humanas no pós-humanismo e, agora, mais ainda, no pós-pandemia.

Na continuação, já no número 177, o Santo Padre Afirma que “o querigma possui um conteúdo inevitavelmente social: no próprio coração do Evangelho, aparecem a vida comunitária e o compromisso com os outros. O conteúdo do primeiro anúncio tem uma repercussão moral imediata, cujo centro é a caridade”. Aqui está a mais contundente formalidade da caridade como centro e alma do Evangelho e, outrossim, imperativo categórico da ação cristã. O mandamento do amor é a síntese de compreensão para o ser e agir do discípulo de Jesus Cristo. Um sinal é aberto não só para quem é seguidor de Jesus de Nazaré; mas também para quem não é crente e é até mesmo ateu. O dado performativo que para alguns, os não crentes, pode ter por via a razão, no existencialismo e humanismo cristãos pode ser a fé, pela conversão e abertura aos valores do evangelho.

Enfim, eis uma breve apresentação, que tem uma finalidade mais provocativa do que conclusiva. Nesta época de tantas polarizações, fragmentações, desconstruções, vazios e perda de sentido, algo novo todos nós somos chamados a construir. Temos que trazer para nossas rodas de conversas, reflexões e proposições, algo que nos leve ao enfrentamento do que teremos que associar psicologicamente, traduzir e viver no cotidiano. A teologia com sua construção epistemológica tem consequências morais, que podem ter um lugar de sobrevivência necessária, se forem apresentáveis e publicizadas com um estilo preenchedor dos hiatos que existem na interioridade e na consciência de todos os seres humanos. Aí ela, a teologia, e especificamente a sua ética, poderá ter um lugar no espaço público, sendo profundamente humana. Assim o seja!

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