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janeiro 28, 2024

Zé do Mundo

Vicente Serejo – Jornalista e editor da coluna Cena Urbana, na Tribuna do Norte Veja, Senhor Redator: se um dia tivesse que roubar um personagem, para com ele realizar o sonho de um grande romance, roubaria do advogado Ricardo Sobral a figura humana de Zé do Mundo.

Vista parcial da cidade de Ceará-Mirim/RN

Vicente Serejo - Jornalista e editor da coluna Cena Urbana, na Tribuna do Norte

Veja, Senhor Redator: se um dia tivesse que roubar um personagem, para com ele realizar o sonho de um grande romance, roubaria do advogado Ricardo Sobral a figura humana de Zé do Mundo. Li sua pequena história na crônica que publicou para seus leitores, nas redes sociais. Era um homem baixo, muito forte, de uma força física que espantava. Nos dias alegres do carnaval, fazia o papel do caçador na tribo de índios desfilando nas ruas velhas e quietas de Ceará Mirim.

Quando li a história, telefonei a Ricardo Sobral e disse que aquela figura tinha a riqueza de um personagem digno do genial Gabriel Garcia Marques. Quem sabe, da sua Macondo, em Cem anos de solidão. Mesmo sem saber, Zé do Mundo foi o grande caçador que num enredo invertido, como um pobre herói anônimo das ruas, acabou sendo a representação perfeita dos garimpeiros que hoje levam a desgraça e a miséria ao povo Yanomami, agora flechados pela ambição humana.

Feito na dureza da vida, forjado na luta pela sobrevivência, era como se Zé do Mundo, na sua pureza, deixasse em casa, presa no quintal, toda aquela sua coragem física para, no Carnaval, ser o caçador. E então, sob o olhar amoroso do povo, bailava com sua espingarda de faz de conta, no meio dos índios, com a leveza de um grande bailarino no espetáculo da alegria, mesmo sabendo que seu destino, na última cena, seria o de morrer flechado pelos índios como um símbolo do mal.

Sua morte triste revela a riqueza da herança. Do significado que deixou como a metáfora de uma denúncia que se a realidade não criou, a literatura, essa criadora de mundos, seria capaz de inventar. É ele, sim, na sua Macondo, muito antes da cidade de Gabriel Garcia Marques inventá-la. Tão real que acaba por denunciar todas as Macondos do mundo, se a ambição dos homens é a mesma em toda parte. Há sempre, em qualquer lugar, uma cidade entre lutas e conflitos sociais.

Quando li a história de Zé do Mundo, confesso, tive a certeza de que ela existe com os seus poderosos, numa trama que emociona como se fosse de verdade. E é. A criação literária sopra vida nas pessoas, seus lugares e histórias. Onde fica Macondo, se é fictícia e se só existe no romance de Gabriel Garcia Marques? Nos confins da Colômbia, dirá um crítico literário. Não. Macondo fugiu de lá para também existir nos bairros miseráveis, favelas, nos guetos pobres, em toda parte.

Para Garcia Marques – e ele disse ao receber o Prêmio Nobel – seria bom que todos os povos tivessem, mesmo miserável, o direito de escolher a própria morte. Zé do Mundo escolheu ser caçador da tribo de Ceará Mirim, a Macondo do canavial. Toda aldeia, vila ou cidade deveria ter um Zé do Mundo, aquele que escolheu como queria morrer. Afinal, Zé do Mundo, mesmo muito pobre, preferiu ser um caçador. E treinar, todos os anos, para morrer em pleno carnaval…

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