Um pouco da discriminação a religiosidade afro em Natal
Gutenberg Costa – Pedagogo, Bacharel em Direito, Pós Graduado em Educação Ambiental, Escritor e Folclorista.
Gutenberg Costa – Pedagogo, Bacharel em Direito, Pós Graduado em Educação Ambiental, Escritor e Folclorista.
Falta-nos um historiador para esmiuçar a triste história de nossos antigos pais e mães de santos. E o tal pesquisador deverá ler velhos jornais, se ainda estiverem a disposição e em condição de leitura. Mas, sabe-se que os veículos impressos no século XIX quase nada noticiavam sobre os nossos mestres religiosos e seus cultos afros aqui por Natal. A predominância eram as notícias e os eventos religiosos da oficialesca Igreja Católica. Hoje se fala muito em discriminação racial e intolerância religiosa, isso em pleno avançado e tecnologicamente século XXI, imaginem nos séculos XIX e início do XX. O genial intelectual paulista Mário de Andrade (1893-1945), quando esteve aqui em Natal, em 1929, ao lado do seu grande amigo Câmara Cascudo (1898-1986), teria visitado alguns centros Afro Umbandistas e dizem que o paulista teria ‘fechado o corpo’, no meu bairro do Alecrim.
Em Natal, ocorreram incontáveis prisões e repressões aos adeptos da religiosidade afro. Seus instrumentos musicais eram presos ou mesmo destruídos pela então força policial. Os mestres e mestras eram maldosamente tratados por ‘macumbeiros’, ‘feiticeiros’ ‘catimbozeiros’ e ‘xangozeiros’, entre outras denominações depreciativas. Dois pesquisadores trataram inicialmente da temática em questão aqui em Natal, o folclorista Câmara Cascudo e o escritor Sérgio Santiago (1900-1995). O mestre Cascudo publicou o seu trabalho ‘Meleagro’, de 1978, em segunda edição, e o professor Santiago, ‘O Ritual Umbandista’, em 1973.
Nos anos 80, folheando antigos jornais no arquivo do saudoso Jornal, A República, de 27 de outubro de 1900, me deparo com a notícia da prisão de cunho religiosa do mestre afro, conhecido como ‘Manoel Remígio’, chamado pela então imprensa de feiticeiro e pajé. Preso em uma sessão religiosa nas proximidades da Lagoa de Manoel Felipe, no bairro de Tirol. Em 1905, dia 15 de abril, o citado jornal informa a notícia da morte do negro africano Mestre Paulo que, para disfarçar sua crença, liderava o grupo folclórico afro, conhecido como Zâmbe. Já a velha e mestra negra Bibina, do mesmo modo, tinha o seu grupo de Zâmbe nos arredores da Lagoa do Jacó, no bairro das Rocas.
E assim, os mesmos iam sofrendo e, de certo modo, burlando a repressão policial vigente naquele tempo. Quando entrevistei o mestre Severino Guedes, em sua casa do bairro do Alecrim, em 1993, esse se confessando Católico, me disse que seu pai era filho de escravos dos engenhos de São José de Mipibu/RN e de lá havia trazido o também Zâmbe, que é na realidade uma dança folclórica e mística, oriunda da África.
Os cultos continuavam na clandestinidade, com o perigo de serem pegos de surpresa e sofrerem com humilhações de delegados, soldados e investigadores. O primeiro Centro Umbandista autorizado pelas nossas autoridades policiais foi o do mestre João Cícero, no bairro das Rocas, em 1947. Mesmo assim, nesse referido ano, o casal de religiosos, Manuel Pereira da Silva e sua esposa Francisca Pereira de Lima, foi obrigado a realizar uma de suas ‘sessões’ dentro da própria delegacia, tendo as autoridades como observadoras e censoras. O delegado da Ordem Social presente na ocasião era o doutor Wilson Dantas (1920-1998). Uma humilhação religiosa bem explícita!
Particularmente, comecei a frequentar com respeito vários centros umbandistas aqui por Natal, como o da famosa Mãe Albina Alves Pena (1930-1991), do bairro das Rocas, aonde havia também o centro do negro bem alto, conhecido por Brasil, próximo a praia do Meio. Nas Quintas, reinavam os babalorixás Zé de Arimatéia e Zacarias. Em nosso arquivo, temos fotografias dos saudosos Mãe Albina e Arimatéia. A Federação Umbandista só veio a ser fundada nas Rocas, em 1963, tendo como primeiro presidente Severino Monteiro. Depois teve a direção de ‘seu’ Jonas e José Clementino, com sede própria, próximo a feira do citado bairro.
Em janeiro de 2014, fui entrevistar o mais antigo Babalorixá em atividade na cidade do Natal, José Clementino, nascido em 15 de agosto de 1930. Era noite, cheguei lá e fui muito bem recebido por ele. Respondeu-me muitas coisas, mais tristes, como dezenas de humilhações e prisões sofridas: “Fui preso mais de 40 vezes. Os policiais chegavam e iam amedrontando todo mundo. Quebrando tudo e nos levando presos. Um dia, um senhor todo vestido de branco conversou com o delegado e este nos soltou, dizendo – deem graças ao professor Câmara Cascudo, que veio aqui agora pedir pra soltar vocês. Se não fosse ele, vocês iam mofar aqui bando de vagabundos...”. O velho religioso, muito emocionado, lembra do nome do então delegado – Rodolfo Pereira.
Mestre Clementino é um tipo alto, não muito magro, cabelos grisalhos e de muita lucidez, ainda atende seus filhos de santo e adeptos, ali desde 1961, na Mestre Lucarino, número 548, mesma rua da Escola de Samba Balanço do Morro. É nome citado pelos referidos escritores acima mencionados, além de Veríssimo de Melo, em seu Folclore Brasileiro, de 1977. Zé Clementino é pai de dezenas de filhos, casou-se com várias mulheres e faz questão de alfinetar alguns religiosos umbandistas de seu tempo: “Pode escrever aí que eu sempre gostei de mulheres e ainda gosto”. E terminou a sua declaração sexual dando homéricas gargalhadas...
E parte dessa entrevista foi publicada no meu livro ‘Cultura Popular – Vivências e Anotações de um Pesquisador – Folclorista’, de 2014. Poucas pessoas ainda sabem que temos uma memória ali bem pertinho e viva da nossa discriminada religiosidade afro, na Natal tão esquecida, que não consagra os vivos... espera morrer para, então, dar início as ditas honrarias póstumas!
Morada São Saruê, Nísia Floresta/RN.
Gratidão por lembrar a história do nosso povo, suor, lutas e lágrimas, mas acima de tudo amor ao nosso sagrado 🙏🏽
A federação também teve uma mulher presidente Mãe Neta, ainda viva e residente no bairro roças!