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março 7, 2021

Três velhinhas

Nilo Emerenciano – Arquiteto, escritor, articulista Eram três irmãs, pequenas, mirradas, velhinhas.

Foto Ilustrativa

Nilo Emerenciano - Arquiteto, escritor, articulista

Eram três irmãs, pequenas, mirradas, velhinhas. Clara, Bela e Moça. Moravam em uma casa que ficava por trás da nossa. De cima do muro ou dos galhos da mangueira eu podia ver o quintal e a porta da cozinha, e pelos menos uma delas sempre se movimentando em meio aos cacarecos.. Eu tinha medo, e se erguiam a vista em minha direção desviava o olhar e fingia não estar ali.

 Quem eram, o que faziam, viviam de que? Sem homens, sem crianças, sem parentes?

Uma tarde, ao voltar da escola, havia uma movimentação diferente. A mais velha, Clara, havia morrido. Minha mãe e minha tia estavam prestando alguma ajuda e eu corri para lá. Ia matar a minha curiosidade por entrar na casa, e, afinal, era a minha primeira morte.

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Final de tarde, a sala pequena, as velas, o cheiro de cera, o caixão. O corpo mais mirrado ainda do que em vida, a pele cinza-amarelada, a presença quase palpável da Indesejada. Meus olhos curiosos percorreram o que podia ver da casa. Os poucos pertences, o odor de velhice em todos os vãos. O piso de tijolos brancos. A telha vã.  A pouca mobília. Um quadro do sagrado coração de Jesus.

Mas observei principalmente as duas irmãs da morta. Bela era branca, pele fina, quase cor de rosa, olhos claros e vivos, cabelos finos escorridos. Sorria, às vezes. Moça era mais amorenada. Cabelos presos em um coque. Exígua, diria. Não levantava os olhos, mas observava tudo. Usavam roupas simples como de gente do interior. A idade dessas mulheres era, e continua pra mim, até hoje, indefinível. Tinham a idade do tempo. E do esquecimento.

Três coisas marcaram aquele fim de tarde: a pobreza quase indigente daquelas criaturas. A velhice em tudo, nelas, nas roupas, na casa, no ar, no corpo morto (era como se Clara estivesse estado ali, no caixão, há muito tempo), os indícios da solidão, e principalmente a presença soberana da morte, ou talvez da fatalidade; do destino, do fim.

Pouco tempo depois foi a vez de Bela. Não se recuperou da perda da irmã mais velha e caiu em profunda depressão. Foi definhando, definhando, até morrer em uma tarde em tudo muito parecida com a outra. Mais uma vez eu estive lá, me sentindo mais seguro, quase experiente. Moça estava indócil. Não chorava a irmã. Conversava com ela, procurava estabelecer contato como se Bela ainda pudesse ouvir. - - Bela, não venha me buscar viu? Eu não quero ir.  Não vou. Diga a Clara também. Ela veio buscar você. Vai querer vir atrás de mim. Eu não quero, ouviu? Inclinava-se sobre a borda do caixão e erguia a voz: - Não venham que eu não vou! Vai ser tempo perdido. Não vou!

Estava trêmula, corria um pouco de saliva pelo canto da boca. As pessoas a afastaram, ela subiu o tom:- Não vou Bela. Você me ouviu?

E não é que não foi mesmo? Pelo menos não tão cedo.

Moça tinha tamanho apego à vida, que beirava o absurdo. Teimava em não dormir, levando horas acordada até ser vencida pelo sono. Cabeceava pela casa, como uma sonâmbula ou um fantasma.  Temia adormecer e não voltar a acordar. Conversava com as irmãs mortas. Esbravejava.

Minha tia começou a cuidar de Moça. Diariamente dava alguma assistência. E através dela soubemos mais alguma coisa das irmãs. Segundo minha tia, quando mais jovens, moravam no bairro da Ribeira e sobreviviam de lavagens de roupas. Todas solteiras, sem filhos, ajudavam um garoto que lavava carros ali nas imediações da Avenida Tavares de Lyra. Davam-lhe refeições. Esse garoto tornou-se um empresário bem sucedido, e, em um gesto de gratidão, teria sido ele a comprar a casa e instalar as três mulheres em sua velhice. Um funcionário trazia a feira da casa.

 Gostaria de saber mais. De onde vieram? Seus pais? Seus sonhos de jovens? Haveria amores em suas histórias?

Moça dizia que tinha chorado na barriga da mãe e por isso adivinhava. Dizia também que não piscava. Essa eu quis ver e topei encará-la. Sentamos em lados opostos da mesa e nos olhamos olho no olho. Não é que aqueles olhinhos tímidos se tornaram enormes, fitando dentro dos meus? Não aguentei e pisquei. Passei a acreditar no que ela dizia. Mas que tipo de gente não pisca?

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Tio Biu também não piscava. E rangia os dentes. E dizia que pegava cobras. Que havia matado uma onça com as mãos. Que havia lutado na revolução dos paulistas.  Não sei se era verdade, sei que adorava ouvir tio Biu contar suas aventuras, sentado na mesa da cozinha, enquanto ele pegava feijão gelado para jantar. O tio morava no Recife, no bairro do Beberibe. Todos os anos em janeiro ele vinha em uma visita que não acabava mais. Primeiro porque era o aniversário do meu pai. Segundo por causa da festa de Reis.  Minha tia fumaçava e minha mãe era uma aflição só. Tudo porque o tio era baixinho, largo, musculoso, óculos de fundo de garrafa e uma terrível propensão para confusão. Bebia tudo que aparecesse e na falta, consumia o álcool da nossa casa. Papai era quem o salvava das confusões em que se metia. Não que ele pedisse ou agradecesse. Um carnaval, tio Biu puxou briga com a tribo tupi-guarani do Alecrim. Tomou a lança de um pajé e quebrou, o que foi suficiente para que os índios saltassem em cima dele. Foram chamar papai: - Corra que os índios vão matar o seu irmão! Papai era homem de rádio, muito conhecido, conseguia apaziguar os ânimos para contrariedade de tio Biu: - Cacique de bosta. Não pedi ajuda. Não pedi ajuda!

O tio era cuidadoso com umas velhinhas que cuidava lá em Beberibe. Dava banho, enxugava, penteava os cabelos, punha perfume Royal Briar e talco Ross. E enquanto estava lá em casa, entre uma carraspana e outra, ele ajudava a cuidar de Moça, que por algum motivo se engraçou do tio. Minha tia bufava, revoltada: - Era só o que faltava! Esse cu de cana invadiu a casa e age como se fosse dele! Na verdade o tio se apossara até da cozinha. Fazia café e sentava junto com Moça na pequena mesa. E estava presente também no dia que ela, enfim, morreu.

Moça vinha se esvaindo lenta, mas irremediavelmente. Enxotava as irmãs mortas, temerosa: - Vão embora! Nessa tarde ela estava de cama. - Pneumonia, diagnosticou o médico, junto com infecção urinária. Estavam presentes mamãe, tio Biu, minha tia e eu. Em determinado momento Moça abriu os olhos, olhou em redor e falou com voz débil: – Chegou um carro. Desceram Bela e Clara. Não, Bela, não Clara. Me deixem. Não vou...

E morreu.

NATAL/RN

Uma resposta para “Três velhinhas”

  1. Gutenberg Costa disse:

    Bela crônica ou belo conto. Adorei o linguajar bem nordestino… definhando…kkk. Texto bom é o que sabe nos prender como o tal do nó cego… Parabéns amigo Nilo!