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junho 9, 2024

TODA SOMBRA ME REFRESCA

NILO Emerenciano – Arquiteto e escritor Fui, em uma dessas tardes de chuva, ver o filme Duna.

NILO Emerenciano - Arquiteto e escritor

Fui, em uma dessas tardes de chuva, ver o filme Duna. Nossos cinemas, todos instalados em shoppings centers, não nos oferecem opções. Exibem os mesmíssimos filmes como se fosse algo combinado. Há apenas uma exceção quando do Festival Varilux de filmes franceses, diga-se de passagem, com muito pouca divulgação.

Mas voltando à vaca fria, fui ver Duna. Dá para perceber que está em moda a produção dessas aventuras fantásticas, com viagens mirabolantes pelo espaço e civilizações frutos das mentes espertas dos escritores de ficção. Nada se equipara a Guerra nas Estrelas, de George Lucas, mas Hollywood segue tentando. Pelo menos sai do universo constrangedor dos super-heróis.

Sou fã, não vou negar. Leitor aficionado de Júlio Verne, Edgar Rice Burroughs, Isaac Asimov, Arthur Clark, Ray Bradbury, vi com alegria "2001 – Odisseia no Espaço", de Kubrick, na tela do Cinerama, em São Paulo. Fui ver Guerra nas Estrelas, os três primeiros (por ordem de lançamento). Isso sem falar nas leituras de Flash Gordon no tempo do ronca. Não sei, mas tenho desde sempre um ranço com a TV, por isso não posso dizer que fui fã do dr. Spock (Jornada nas Estrelas) ou o dr. Smith (Perdidos no Espaço).

"2001 – Odisseia no Espaço"

Ah, ia esquecendo da minha queda por tudo que se refere ao fantástico e extraordinário, desde Ronda dos Fantasmas na rádio Poti, aos livros e filmes de Drácula e outros monstros menos votados, incluindo alguns de Stephen King. E aí Arquivos X, tenho que reconhecer, foi programa imperdível.

Pois então, qual não foi minha decepção com a versão que lançaram de Além da Imaginação (The Twilight Zone). Fui espectador fiel da versão de 1959. Morria de medo e tensão mas não perdia nenhum episódio. A versão atual é pobre e sem imaginação (o trocadilho foi acaso). Aos que quiserem conferir há vários capítulos da velha série no You Tube.

O que me chamou a atenção em Duna? Uma superprodução, sem dúvida, efeitos especiais espetaculares e bons atores. Mas dá para aceitar uma história que se passa no futuro, com uma tecnologia maravilhosa (foguetes e outros artefatos), mas com os personagens usando adagas e espadas? Mulheres de burca e homens vestindo armaduras da Idade Média? Isso sem falar nos temas que são os mesmos do teatro grego e romano e que também vemos em Shakespeare: inveja, ambição, traições, jogo de poder, por aí.

Filme Duna - uma história que se passa no futuro, mas com os personagens usando adagas e espadas e mulheres de burca e homens vestindo armaduras da Idade Média

Nada de espantar quando observamos automóveis de última geração com computadores de bordo e tudo mais, carregando terços, imagens de santos e outros badulaques dependurados no painel. Técnicos de futebol carregando seus patuás. Jovens e adultos carregando uma enorme cruz no peito.

Na epidemia do Covid-19, o sacerdote aqui do bairro circulou pelas ruas em cima de uma camionete benzendo o bairro e adjacências. Nada mais medieval; quando não se conhecia a causa das pestes e se apelava a Deus. Hoje, se recorre aos laboratórios e cientistas que buscam vacinas. Sem esquecer a ajuda de Deus, claro.

No Maranhão, na cidade de São Luís do Ribamar, o largo em frente da Igreja estava repleto de automóveis, todos com o capô aberto como bocas escancaradas. Perguntei o porquê daquilo. A pessoa me informou que era para receber a bênção do padre. Claro que esperei para ver. Lá paras tantas o sacerdote saiu da igreja com o sacristão ao lado carregando um grande balde cheio d'água benta. E aí percorreu todos aqueles carros aspergindo com uma broxa os motores à mostra. Saí dali pensativo. Mas cala-te boca, com o devido respeito às crenças de cada um: não seria mais eficiente um bom seguro?

Bênção dos carros em São José de Ribamar/MA

O professor Herculano Pires em um livro intitulado O Espírito e o Tempo, nos fala dos horizontes culturais. E nos diz que os homens evoluem, passando por esses horizontes ao longo do tempo, mas carregando atrás de si, como uma cauda ou uma herança, resquícios das etapas anteriores.

Trago no meu DNA traços de uma família tradicional do Seridó e de outra família, essa urbana, a do meu pai. Minha mãe nos fazia tomar banho de praia na quinta-feira e “guardar o sal” até o outro dia. Imaginem vocês o sofrimento da coceira na pele. Não sei de onde ela tirou isso, já que era católica roxa.

Na sexta-feira se almoçava peixe ou outro crustáceo, carne nem pensar. Pela sua mão frequentei missas, fiz a comunhão e até coroinha em dia de lava pés fui. Ganhava um envelope com um santinho e uma nota de cinco mil réis, aquela que tinha a primeira missa no verso.

A imagem do Cristo crucificado me olhando lá do alto me dava medo e pena, como em Marcelino Pão e Vinho, lembram? Aquele homem seminu, magro, com pregos nas mãos e pés, sangrando, uma cara de desespero, levando uma coroa de espinhos cravada na cabeça, me assustava de verdade. Refugiava-me numa capela ao lado, onde ele aparecia sereno e com um olhar tranquilizador.

De minha mãe guardo a fé e a devoção; de meu pai a razão e o olhar sempre atento. Ambas me são necessárias sempre que busco a prece no silêncio de minha alma. E não espalhem, mas ao entrar no mar ainda hoje, molho os dedos na fimbria das ondas e me benzo fazendo o pelo sinal e pedindo a proteção de Jesus e as bênçãos de Iemanjá.

Em Salvador uma baiana veio me dar banho de ervas. Minha mulher estranhou. Meu filho você que não acredita em nada disso vai permitir? Respondi: - Meu amor, como escreveu Guimarães Rosa, “toda sombra me refresca...”

Uma resposta para “TODA SOMBRA ME REFRESCA”

  1. Solrac Seraus disse:

    Imperdiveis as crônicas do corajoso e determinado Emerenciano. Sem dúvida uma pessoa de saber formidável. Parabéns ao escritor, bem como ao blogueiro.