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janeiro 14, 2024

TEMPO E MEMÓRIA 

NILO Emerenciano – Arquiteto e escritor  A piada é antiga.

NILO Emerenciano - Arquiteto e escritor 

A piada é antiga. Na era pré jornais televisivos os cinemas exibiam, antes do filme, um noticioso, normalmente mostrando inaugurações, atos oficiais e coisas do tipo. Depois vinha o canal 100, de Carlos Niemeyer, exibindo belas imagens dos jogos no Maracanã. Rolou então uma história (verdade, mentira?) que contava de uma cena acontecida no cinema Rex, durante a exibição do cinejornal.  

Cinema Rex

A cena se passava no aeroporto. A câmera mostrava o então presidente Juscelino Kubitschek que se despedia e subia os degraus que conduziam à porta do avião (nesse tempo não havia ainda esses túneis móveis que fazem a ligação direta). Ao alcançar o topo da escada alguém gritava da plateia: - Juscelino!!! O presidente parava e se voltava como para atender o chamado e o engraçadinho gritava novamente – Nada não, nada não! E Juscelino só então adentrava o avião. O cinema vinha abaixo entre palmas, risos, assobios e vaias. Imaginem, o piadista havia assistido a sessão anterior e planejado a gracinha.  

Juscelino Kubitschek

Nunca duvidei desse ocorrido. Até porque nas sessões de cinema acontecia de tudo, namoros e amassos no mezanino, pegações, chicletes arremessados lá do alto direto em nossas cabeças, por aí.

Os mocinhos contavam com o apoio de uma torcida que aplaudia aos gritos quando apareciam galopando para salvar a garota. Ao serem exibidos os trailers havia sempre alguém que gritava: - Eu venho! Outro passou a completar: - Eu também! A coisa evoluiu e radicalizaram: -Venha e traga sua mãe! Até que o cara anunciou, antecipando as imprecações: - Eu venho e trago mamãe! Outro usava um chapéu que usava para tanger o condor da vinheta da Condor Filmes provocando risadas e gritos de xô, xô, xô até a ave sumir no horizonte.   

Pois então? Eis que vi no YouTube esse humorista chamado Paulo Vieira que a Globo colocou para cantar no especial de fim de ano de Roberto Carlos – o Rei tem de aguentar cada uma! E não é que em uma entrevista o cara conta que o padrinho dele fez o mesmo em um filme de Joana D’Arc, igualzinho, só mudou o personagem, o local e a época. Em vez de Juscelino Kubitschek, Joana D’arc, a virgem de Orleans, subindo a escada do patíbulo e parando ao ouvir o grito do padrinho de Paulo Vieira.  

Será possível que alguém teve a mesma ideia, da mesmíssima forma, com o mesmo feeling? Ou será que é tudo invenção? Nunca vamos saber.  

Uma ocasião eu estava em um clube fora de Natal, em São Luís do Maranhão mais precisamente, onde um cidadão contava casos de Renato Caldas e Zé Areia como se fora dele. E fazia sucesso. As coisas são assim, se espraiam e com o tempo perde-se a autoria ou a origem da coisa toda. Daí a importância do registro preciso, como faz o escritor Gutenberg Costa. 

- O que houve com seu dedo?

Adolescente, eu brincava assustando os amigos contando a história do caminhoneiro que atropelava e matava uma mulher em uma noite escura e chuvosa. Depois, assustado, escondia o corpo entre os arbustos das margens da estrada. Mas havia um detalhe tétrico: ao ver na mão do cadáver um anel ele não resistia e se apropriava da joia, tendo para isso que decepar o dedo junto. Passou. Porém em outra noite, fazendo a mesma viagem, ele atendeu uma mulher que pediu carona. Conversa vai, conversa vem, ao se aproximar da curva fatídica ele percebeu que faltava um dedo na mão da passageira. Reunindo coragem conseguiu perguntar, gaguejando: - O que houve com seu dedo? Aí vinha a conclusão engraçada, pois com o clima criado, os ouvintes tensos, atentos, a gente soltava um inesperado...- Não foi você?  E o susto era geral, seguido de risadas pra disfarçar o nervosismo.  

Anos depois vi no Cine Rio Grande o ótimo filme A Árvore dos Tamancos, italiano, se não me falha a memória, feito com camponeses reais da Lombardia.  Pois bem, no filme, noitinha, as famílias de agricultores se reúnem para aquelas conversas compridas do interior. Para minha surpresa um dos personagens conta história estruturada de forma parecida, com o mesmo final: - Non eri tu? E com o mesmo efeito de sustos e risadas.  

Como ocorre isso, histórias e hábitos se perpetuando no tempo e no espaço? Os gregos antigos faziam oferendas ao Deus Apolo nas encruzilhadas ermas. Achamos bonita e chic essa forma de culto, afinal eram os gregos.  Os umbandistas no Brasil fazem o mesmo, deixam seus Ebós, ou ofertas, nas encruzilhadas, normalmente em um alguidar contendo um pouco de tudo, charutos, velas, jerimum, farofa, pé-de-moleque, cachaça ou espumante, além de outras coisas mais. Nós torcemos o nariz porque é coisa de pobres e ignorantes e como tal, reprovável. Ou pior ainda: coisa do diabo.  

O Mestre Câmara Cascudo rastreava essas coisas até bem longe nas suas origens. Ligava a América ao continente europeu, aos mouros, portugueses, espanhóis, gregos, enfim, ao velhíssimo mundo. Canções, hábitos, superstições, gestos, vestuário, lendas, tudo, absolutamente tudo o Mestre passava na sua bateia de pesquisador atento. E aí a gente aprende que somos e fazemos as coisas não como nossos pais, como cantava Belchior, mas como os tataravôs dos nossos tataravôs, a quem devemos respeito e gratidão por tudo que herdamos.  

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