Jornalismo com ética e coragem para mostrar a verdade.

outubro 18, 2020

Retalhos do caminhar de uma família nordestina

                   (Ficção/Realidade – Autor: Aldo Torquato)             Maria Joaquina da Conceição nasceu na fazenda Acauã, proximidades da Serra da Cruz, município de Riachuelo, no ano de 1897, não se sabendo ao certo nem o dia nem o mês, porém terá sido pelos meados de maio, conforme lhe diziam seus padrinhos de batismo.

Foto: Ilustração

                   (Ficção/Realidade – Autor: Aldo Torquato)

            Maria Joaquina da Conceição nasceu na fazenda Acauã, proximidades da Serra da Cruz, município de Riachuelo, no ano de 1897, não se sabendo ao certo nem o dia nem o mês, porém terá sido pelos meados de maio, conforme lhe diziam seus padrinhos de batismo. Maria, apelidada desde criança de “Quininha”, forma diminutiva de Joaquina, casou com João Pedro da Silva, logo que chegou aos quatorze anos de idade. Casar mesmo não casou, é bem verdade. Ajuntou-se, como se dizia antigamente. Mas para ela – e nisso havia total concordância com o marido – “casamento é boa união”. Sendo assim, os dois eram de fato casados, pois viviam em quase perfeita harmonia. Rusgas, havia de vez em quando, mas não suficientes pra desapartar os troços dos dois. Coisas de marido e mulher, diziam entre eles.

            Na fazenda Acauã, as noites eram intermináveis. Dormia-se cedo e cedo acordava-se. Nada havia de divertimento que pudesse atrapalhar a atenção que um dava ao outro. Restou desse não-ter-o-que-fazer  que vinte e cinco filhos foram gerados.

            Dos filhos de Quininha e Joca, treze não se criaram, morreram logo aos primeiros anos de vida. “Deus levou”, dizia Quininha, conformada. Dos doze que escaparam, cinco eram homens e o resto mulher. “Fia fême”, nascida pra procriar.

            Maria Pedro da Conceição era a mais nova de todos os filhos de Quininha e Joca, e seguiu a mesma sina da mãe. Antes de completar dezesseis anos conheceu em uma festa de apartação um caboclo da fazenda Santa Rosa, distante quatro ou cinco léguas da Acauã, e logo se entendeu com ele. Namoro mesmo não houve, mas as embaixadas trazidas e levadas pelas amigas não deixaram dúvida que o negócio era sério. Tudo fazia crer que o cabra tinha boas intenções. Menos de seis meses depois, já estavam casando na capela do povoado de Quintururé, distante pouco mais de meia légua à barravento.

            Como era de costume, logo que casou, Mariquinha foi morar na fazenda cuidada por seu marido. Apesar de jovem, Batista tinha no rosto as marcas da vida dura que levava, cuidando do gado do coronel Assunção, e sabia muito bem que cabra irresponsável não tinha vez com o patrão. O regime de trabalho era aquele da velha semi-escravidão, que enriquecia cada vez mais os patrões e condenava à miséria a grande maioria. “As coisas são assim e pronto”, dizia pra si mesmo, aparentemente conformado. Apenas aparentemente, pois no fundo no fundo, Batista tinha planos de um dia sair daquela vida. Queria ter a sua própria terra, possuir vinte ou trinta cabeças de gado, criar ovelhas e bodes, plantar o que bem entendesse, colher o que Deus permitisse, ser dono do seu nariz. Um dia conseguiria, pois obstinação não lhe faltava. Mas como sair daquela teia que lhe prendia à pobreza e à quase escravidão? Resposta imediata não tinha, mas continuava matutando. Um dia...quem sabe?  Essa idéia fixa não lhe saía da cabeça.

            Passaram-se os anos modorrentamente e eis que, quando olharam ao derredor, quinze filhos haviam tido. Pouco, se comparados aos vinte e cinco da mãe Quininha. Acontece, porém, que a vida estava mais dura, mais difícil e criar os nove filhos que sobreviveram era uma tarefa árdua para o casal. O mundo estava mais cheio de gente e serviço já não havia com antes.

            Por sorte de Mariquinha e Batista, Tonho, o caçula, e Zefinha, a do meio, debandaram pros lados da cidade de Baixa-Verde. Corria por todo canto a notícia que em Baixa-Verde havia muito trabalho, usinas de beneficiamento de algodão e sisal e um comércio em franco desenvolvimento. Resolveram mudar de vida, que aquela que os pais levavam não parecia dar futuro a ninguém.

De Tonho, pouco se sabe, pois depois de morar um ano e pouco em Baixa-Verde, não se sabe por qual razão, resolveu ir pra São Paulo, escrevendo apenas de anos em anos, e assim mesmo em bilhetes curtos e mal escritos. Era quase analfabeto e, certamente, na cidade grande,  havia encontrado emprego de servente de pedreiro ou coisa parecida. Talvez nunca mais voltasse. Ficaria roendo à distância o amor pela sua terra natal, “tão seca,mas boa”, como diria Luiz Gonzaga, o rei do baião, na famosa canção.

Por volta do ano cinqüenta do século passado, Zefinha, já com mais de vinte anos, namorou um tal de Zé Peneira. Depois de muita aproximação, provocando falatórios na vizinhança da rua em que morava, Zefinha viu-se grávida e tratou de chamar o responsável para uma conversa séria. Bem intencionado como era, Peneira não se recusou ao casamento e foram se apresentar ao escrivão Chico Ataliba. Selaram no cartório e depois na igreja o que já estava de fato selado. Viver “amancebados”, nem pensar. Casal amasiado não podia freqüentar a igreja, nem ser padrinho. Zefinha sabia que o padre Vicente Freitas – que depois veio a ser monsenhor - , quando descobria uma mulher amancebada assistindo missa mandava-a retirar-se do local imediatamente. Não valia à pena correr tal risco. Além do mais, casamento no cartório era chamado simplesmente de “contrato” e não tinha valor perante a sociedade. Casamento mesmo, respeitado por todos, era o religioso. Casal que era apenas “contratado” era visto meio atravessado.

            Tempos difíceis aqueles!

            Zefinha parou de trabalhar. Não porque tenha faltado emprego. Poderia continuar trabalhando na usina de beneficiamento de algodão, mas precisava cuidar dos rebentos. Peneira dizia: mulher minha não trabalha fora. Dez anos depois, carregando cinco filhos nas costas, Zefinha resolveu se separar de Peneira. Já não gostava dele. Ou melhor, gostava, mas não como homem, senão como o pai dos seus filhos. Aos meninos havia dado os seguintes nomes: Roberto, Reginaldo e Roberval. As filhas batizou com os nomes de Joana D’Arc, a heroína francesa, que conhecera em um livro de história geral, e Josenilda, nome que lhe foi sugerido por uma colega, sem qualquer significado aparente.

            Nilda logo demonstrou que não tinha maiores prendas domésticas. Também não era muito afeita aos estudos. Dizia que não tinha cabeça pr’essas coisas. Quando estudava sentia tonturas e enjôos, o que lhe desestimulava mais ainda. Principalmente a ela que na verdade não gostava muito de ler. Não fossem aquelas tonturas, se lamentava, talvez até terminasse o primário. Como se dizia na sabedoria popular: a desculpa do amarelo é comer barro.

            Se não se dedicava aos estudos, é certo que Nilda dava muita atenção aos rapazes. Tida como bonitona, faceira, voluptuosa, os rapazes da cidade não lhe davam sossego. Tempo pra namorar tinha de sobra. E o resultado é que, fruto dos namoros mais arrochados, teve três filhos: Jonielson, Alexsanderson e Romerina. Colocou tais nomes nos filhos porque achou-os bonitos. Só por isso. E lhe bastava. A cabeça de Nilda era mesmo meio avoada.

            De todos os filhos de Zefinha, Joana D’Arc fora a única que se dedicara aos estudos. Com dez anos já havia terminado o primário no grupo escolar Capitão José da Penha. Com quatorze cursara o último ano do ginasial no colégio João XXIII, que havia sido construído pelo padre Lucena,  e só falava em ir pra Natal a fim de fazer o curso clássico. Seu desejo era ser advogada, dizia. “Pr’onde tu vai com essa estória”, falava Zefinha. “Tu já visse fia de pobre se formar e ainda mais em advogacia, que é coisa só pra fia de barão?

            Nesse ponto, Darquinha não dava ouvidos à mãe. Teimosa como era, talvez  por conta do sangue do avô Batista, seguiu para a capital. Arranchou-se na casa de uma parenta e depois de alguns meses encontrou um emprego de balconista numa loja do Alecrim, com carteira assinada e tudo. Matriculou-se no colégio Padre Miguelinho, e terminou o curso clássico, como havia prometido a si mesma, mas foi por três vezes reprovada no vestibular de direito. Não havia se preparado de forma conveniente quando cursara o primeiro e o segundo graus. Desistiu, pois trabalhar parecia ser mais importante naquele momento. A sobrevivência falara mais alto. Pressa pra constituir família não tinha. Namorado não lhe faltava, mas nada de compromisso sério. Teve um filho de um relacionamento esporádico e descuidado, mas preferia viver solteira, pelo menos até que se cansasse desse modo de vida e resolvesse juntar-se a alguém. Pra Darquinha, casar no papel não era muito importante assim. “Casamento é boa união”, dizia ela. Por outro lado, o povo também já não falava tanto. Uns até achavam que apenas se juntar era melhor, porque dava menos trabalho na hora da separação. Os tempos haviam mudado. Até divórcio já havia.  Ao único filho Darquinhadeu o nome de Pedro, que significa pedra. Queria que ele fosse forte, pra enfrentar as dificuldades da vida e virar advogado como ela pensara  ser um dia e não conseguira.

            Pedro nasceu e criou-se ouvindo aquela ladainha da mãe: vá estudar meu filho. A vida passa muito rápida e quando menos você esperar já será adulto, assumirá responsabilidade de família e aí não poderá mais estudar por falta de tempo. Terá que trabalhar pra dar de comer à sua mulher e aos filhos. Aproveite enquanto é jovem e solteiro. Hoje em dia, só quem tem as coisas é quem estuda. Pra tudo hoje se exige concurso, quem não estudar não passa. Você quer ter a mesma sorte dos seus primos, que estão por aí ganhando uma mixaria, sem carteira assinada, sem futuro garantido? Todo dia era a mesma coisa, feito cantiga de perua.  Às vezes, Pedro ficava aborrecido com aquela azucrinação da mãe, mas ouvia calado, pois lá dentro sua consciência lhe dizia: mamãe tá certa... mamãe tá certa...mamãe tá certa.

Passaram-se os anos e o sonho de Darquinha realizou-se: Pedro, com muita luta e incontáveis noites indormidas,  formou-se em direito. Fora o único de uma numerosa família que conseguira concluir um curso superior. Muitas vezes, quando repousava a cabeça sobre o travesseiro pensava e perguntava a si mesmo: o que teria sido da minha vida se não tivesse estudado? Como advogado, queria defender os oprimidos, os deserdados da sorte, os pequenos, para quem a justiça tarda e quase sempre falha.   Porém, não satisfeito apenas em exercer o seu ofício, resolveu aventurar-se -  sem maiores pretensões - pelo caminho das letras. De tanto perguntar sobre o seu passado, ouvir depoimentos dos mais antigos e revolver arquivos, escreveu de uma tirada só uma pequena crônica, à qual deu o seguinte título: RETALHOS DO CAMINHAR DE UMA FAMÍLIA NORDESTINA, na qual relata a trajetória da sua família, que nada mais é que a história de milhões de outras igualmente nascidas no sertão esturricado do nosso amado chão nordestino, carente de idéias e de ações concretas que ponham  fim às profundas injustiças sociais, propiciando a todos, independentemente de cor, sexo e situação econômica, iguais oportunidades.    

            Que Pedro não seja apenas uma exceção!

Uma resposta para “Retalhos do caminhar de uma família nordestina”

  1. ANA disse:

    Bonito relato da verdade do sertanejo