Jornalismo com ética e coragem para mostrar a verdade.

maio 5, 2024

PESSOAS DO BEM

NILO Emerenciano – Arquiteto e escritor A maioria de nós não foi, absolutamente, educada para a prática da solidariedade, apesar de sermos uma população autoproclamada cristã e a mensagem do Cristo ser uma conclamação de amor ao próximo.


NILO Emerenciano - Arquiteto e escritor


A maioria de nós não foi, absolutamente, educada para a prática da solidariedade, apesar de sermos uma população autoproclamada cristã e a mensagem do Cristo ser uma conclamação de amor ao próximo.

Padre Júlio Lancellotti sofre ameaças e processos apesar e por causa da sua dedicação aos indivíduos marginalizados das ruas de São Paulo, pessoas sem teto e usuários da Cracolândia. Madre Teresa de
Calcutá é constantemente acusada de graves defeitos morais.

Um amigo querido atuava junto aos desvalidos, distribuindo mantimentos, brinquedos, roupas e outros
itens em seu próprio endereço. Filas enormes se formavam na sua porta. Pois bem, ouvi de um vizinho certa vez, que ele viciava aquele povo. Não consegui calar e respondi: - Vício bom, não é, esse de comer vez ou outra?

Na nossa educação prevalece o cada um por si. “O mundo é dos espertos”, ouvimos. “O homem é lobo do homem”, dizem também. “Em tempo de murici, cada um cuida de si” e outras coisas do tipo. No meu livro de História Geral nos bons tempos do ginasial no Colégio Salesiano, ao fim de cada capítulo o autor (Borges Ermida) colocava uma pequena história a título de edificação. Uma delas nunca esqueci.

Tratava de um poderoso xeique que construiu um belíssimo palácio. Um problema: ao lado havia um pobre barraco de um homem que se recusava a sair dali. O conselheiro meteu o bedelho, perguntando por que o xeique não mandava derrubar aquilo que enfeava a obra. O xeique respondeu que quando as futuras gerações olhassem o palácio diriam – “Ele foi grande”, e quando vissem o barraco miserável
completariam – “Foi mais que isso, foi justo”. Eu, nos meus tenros anos, já não me conformava. Como justo, se preserva a miséria? Insensível e mau, eu o chamaria.

As estórias infantis não fazem por menos. As crianças João e Maria, quando a velha senhora queimando na coivara pede “água meus netinhos”, respondem: “- Azeite, senhora vó”. E despejam óleo quente sobre a coitada da velha bruxa. Ah, era uma bruxa? Sim, e daí? Merece tanta maldade?

A Emissora de Educação Rural levava ao ar nas manhãs de domingo histórias infantis radiofonizadas. A Bota de Sete Léguas (quando calço minhas botas/dou três passos num segundo/vou até o fim do mundo/ num minuto chego lá), o Gato de Botas, Dona Baratinha (Quem quer casar com a senhora Baratinha/ que é muito bonitinha e tem dinheiro na caixinha?).

Entre essas havia A Cigarra e as Formigas. Resumo: no verão as formigas trabalham arduamente enquanto a cigarra toca e canta. Com achegada do forte inverno do norte da Europa, em meio a nevasca, a cigarra, tiritando de frio, bate à porta das formigas bem alojadas, aquecidas e alimentadas. A cigarra
pede abrigo e a formiga, inclemente, responde - “Não cantou no verão? Pois agora dance!” E dá com a porta na cara da cigarra, que, imagino, deve ter morrido enregelada, ela, a poeta que embelezava com sua música a vida laboriosa das formigas. Dá para aceitar tamanha crueldade?

Falo tudo isso como introdução ao que reputo ser um belo e edificante exemplo. Por força das circunstâncias tenho acompanhado um familiar na Liga Contra o Câncer em sessões semanais de quimioterapia.

Surpreendeu-me a quantidade enorme de pessoas que são atendidas. A recepção é um salão de uns sessenta metros de comprimento, sempre repleto. Depois vem uma sucessão interminável de
ambulatórios onde é feito todo o tipo de tratamento. Pois bem. Diariamente um grupo de voluntários distribui café com ou sem leite, biscoitos, bolachas, bolos, mingau, para todas aquelas pessoas, inclusive acompanhantes.

Liga Norte-riograndense Contra o Câncer - Foto: Tribuna do Norte

Além disso no meio da manhã surge um grupo de jovens senhoras, O Som da Liga, cantando e tocando
para amenizar a dureza daquelas horas. Já vi mágico se apresentando, jovens distribuindo kits de beleza, senhores e senhoras que se dirigem aos pacientes com palavras de ânimo. Há os que anunciam a possibilidade de hospedar pessoas que vem do interior do estado e não têm onde ficar.

Tudo isso sem proselitismo religioso algum. Que bonito. Que sério. O que Jesus dizia? Sempre que fizestes isso a um desses pequeninos, foi a mim que fizestes. Precisa desenhar?

Há, sim, muita gente boa fazendo o bem desinteressadamente. Nas madrugadas, se você prestar atenção, vai ver grupos distribuindo sopa, pão e agasalhos nas ruas e avenidas da cidade. Poderá ver ainda o pessoal do Chuveiro Solidário que duas vezes por semana oferece banho, corte de cabelo e entrega de kits de higiene pessoal, além de roupas para os desabrigados. Seria cansativo listar as numerosas ações. Isso mantém acesa a nossa fé no ser humano e nos faz acreditar que nem tudo está perdido.

Lembro o monsenhor que acolhe Jean Valjean, um ex-condenado, em Os Miseráveis, de Vítor Hugo. Recebe-o à mesa, com a melhor prataria mesmo contra a opinião das mulheres da casa, tímidas e assustadas e além da refeição oferece um quarto onde dormir. E mesmo quando no dia seguinte se descobre roubado, longe de pedir a sua prisão ao policial que o capturou, acrescenta mais uns itens ao butim e lhe diz baixinho: - Use o dinheiro para se tornar um homem de bem. A partir desse gesto Valjean se torna um homem integro e generoso.

É possível, sim, mesmo em nossos dias, sermos justos, corretos, bons. Chico Xavier nos mostrou a possibilidade de tal ação. Trata-se de uma escolha. Qual lado você escolhe?

3 respostas para “PESSOAS DO BEM”

  1. Elza Maria Freire disse:

    Belíssima e profunda crônica! Todos, em prol do bem ! Que bom seria se o mundo fosse assim! O Dr.Ivo Barreto de Medeiros, na sua trajetória de luta
    contra o câncer, escreveu, recentemente, o livro “EU, contador de HISTÓRIAS”, com renda totalmente revertida para o Hospital Infantil da Liga norte rio grandense contra o Câncer, atualmente em construção.

  2. ANGELAMARIA DE LOURDES FREIRE disse:

    Paz e bem!

    Importante assunto que sempre ao longo da história da humanidade, precisa voltar a ser lembrado: o ‘bem’.
    A prática é uma escolha concedida pela ‘criação da vida’, através do livre arbítrio.
    Reflitamos… Há
    Que “Deus” nos ilumine.
    Reflitamos..

  3. ANGELAMARIA DE LOURDES FREIRE disse:

    Dica do bem:
    Ouçamos essa canção… Nos remete a buscar superar nossos eus e quem sabe, mudanças.

    Bitter Sweet Symphony
    The Verve

    A Doce Amargura da Existência em ‘Bitter Sweet Symphony’
    A música ‘Bitter Sweet Symphony’, da banda britânica The Verve, é uma reflexão profunda sobre a condição humana e a busca por sentido em meio às contradições da vida. Lançada em 1997, a canção se tornou um hino da época, marcando a banda como um dos nomes mais importantes do britpop e do rock alternativo dos anos 90. A letra, carregada de melancolia e introspecção, aborda a luta constante para sobreviver (‘Trying to make ends meet’), a inevitabilidade da morte (‘then you die’) e a sensação de aprisionamento em um ciclo inalterável (‘I can’t change my mold’).

    O refrão ‘Cause it’s a bitter sweet symphony, this life’ sugere que a vida é uma sinfonia agridoce, onde momentos de doçura e amargura se entrelaçam, criando uma melodia complexa e muitas vezes contraditória. O protagonista da canção parece estar preso em um molde (‘mold’), incapaz de mudar quem é, apesar de se sentir como ‘a million different people from one day to the next’. Essa dualidade reflete a luta interna entre o desejo de mudança e a aceitação da própria identidade.

    A música também toca em temas de espiritualidade e redenção, como evidenciado na linha ‘Well, I’ve never prayed, but tonight I’m on my knees, yeah’. O pedido por sons que reconheçam a dor do cantor (‘I need to hear some sounds that recognize the pain in me’) pode ser interpretado como um anseio por conexão e compreensão em um mundo que muitas vezes parece indiferente. A repetição da pergunta ‘Have you ever been down?’ ao final da música ressoa como um chamado à empatia, convidando o ouvinte a refletir sobre suas próprias experiências de desolação e a compartilhar uma sensação universal de vulnerabilidade.