OS SINOS DOBRAM POR QUEM?

abril 13, 2025

NILO Emerenciano – Arquiteto e escritor Em tempos em que a intolerância religiosa novamente dá as caras é necessário tecer algumas palavras a respeito.


NILO Emerenciano - Arquiteto e escritor

Em tempos em que a intolerância religiosa novamente dá as caras é necessário tecer algumas palavras a respeito.

Na minha infância, os “crentes” eram meio que estranhos na paisagem. Fácil de serem identificados. As mulheres usavam saias longas e blusas de mangas, cabelos enormes, zero maquilagem, grossas sobrancelhas, unhas sem pintura, sapatos baixos. Os homens estavam de terno mesmo sob o nosso calor. Ambos, homens e mulheres, portavam bíblias sob o braço.

Na esquina da rua Juvino Barreto com a Domingos Sávio havia um templo que já chamava minha atenção porque, ao contrário das Igrejas católicas, mostrava uma paisagem na parede do fundo ao invés de imagens de santos.

Alguns de nós se aproximavam para ouvir da calçada as belas canções que hoje chamam gospel. “Caminhando vou, pra Canaã/ se você não vai/não impede a mim/ gloria a Deus, caminhando vou/ pra Canaã.” Ou a bela “Glória, glória, aleluia/ vencendo vem Jesus”.

Também para tentar paquerar as garotas que saiam, muito sérias, mas sempre com um olhar de soslaio sugestivo. Nenhum preconceito da nossa parte, nada de discriminação. Só alguma curiosidade porque, aí
sim, eram diferentes de nós ou pelo menos tinham costumes diversos.

Da Umbanda e o Candomblé eu só sabia de alguma coisa através dos livros de Jorge Amado. Mas nesse tempo a gente encontrava oferendas feitas em alguidares (às vezes em urupemas) nas encruzilhadas. Eram velas, fósforos, garrafas de cachaça ou Campari, cigarros, charutos e um pouco de tudo: bonecas de pano cravadas de alfinetes, jerimum, bolo preto, frutas, a foto de alguém. Apesar das recomendações
da minha mãe (não toque, menino!) eu não tinha medo. E alguns mais ousados até pegavam e comiam ou bebiam aquele banquete dos santos.

Uma vez vi um papel muito bem dobradinho e abri, curioso. Dentro, em uma letra miudinha, havia um
padre nosso escrito em espiral e às avessas. Só mais tarde, aos dezesseis anos, fui ao aniversário de quinze anos de uma colega de colégio. Surpresa, a festa era no espaço em que eram realizadas as giras, pois a garota era filha de uma mãe de santa conhecida na cidade. As paredes ostentavam figuras de pretas velhas e outras entidades. Achei aquilo o máximo, e a curiosidade só aumentou.

E então, perambulando uma noite pelas ruas das Rocas, criei coragem e entrei em uma casa, atraído pelo batuque que vinha do interior. Era noite de gira. “Eu abro minha gira, com Deus e Nossa Senhora/ eu abro minha gira com preto velho de Angola”. Fiquei besta. Deus e Nossa Senhora? Que mistureba era essa?

O peji ao fundo ostentava imagens de santos católicos, índios, pretos velhos, a escrava Anastácia, Padre Cícero, além de adereços de orixás. As mulheres, vestidas de branco, dançavam em círculos e uma a uma iam recebendo as entidades. Zé Pelintra, Pretos Velhos, Caboclos. Os atabaques soavam, os Ogãs levavam os cachimbos, pembas, charutos e tudo o mais necessário ao desempenho das funções dos santos.

Fui levado até uma velha senhora que falava como uma preta velha. Havia desenhado um ponto riscado no chão de cimento. Cantei junto com ela pois a letra era simples: “Lá na Aruanda tem/ um banquinho em que Preta Velha se sentou/ o mundo estava torto/ e Preta Velha endireitou.” E aí se seguiu uma consulta, com a Preta Velha dando-me orientações, que confesso, não entendi pois o som dos tambores não me permitiu distinguir senão algumas poucas palavras. E eu era lá besta de ficar dizendo o quê? O que foi?

Fiz que compreendi e saí dali benzido, rezado, defumado, abençoado e feliz. Mesmo sem saber o que era Aruanda ou o significado de tudo aquilo. Foi minha introdução no mundo da Umbanda. Muito depois tive a oportunidade de ver um candomblé em Salvador, mas dava para perceber que era uma coisa mais voltada para turistas e não me toquei.

A essas alturas, acho que dá para perceber, eu havia abandonado as práticas católicas. Acho bonitas, mas me remetem às coisas da Idade Média. Até exorcismos, eu soube, estão praticando aqui na terrinha. Bonitos são os cânticos gregorianos, a fé dos fiéis, o momento do sacramento, os livros de Agostinho, bispo de Hipona. E o fato de alguns sacerdotes representarem um certo cristianismo redivivo. Padre Júlio Lancellotti, Monsenhor Expedito, Padre João Maria, Dom Hélder.

Os padres da Paróquia da Sagrada Família, todos alemães, oficiando nos bairros da Ribeira e Rocas, além das praias e vilarejos do litoral que percorriam montados em lombo de burro. Seus nomes aportuguesados eram Frederico, José Vizir e padre José, simplesmente.

Além disso, admiro o fato de a Igreja ter resistido a tantos escândalos, como por exemplo, os frequentes casos de pedofilia e corrupção. Aprendi, ao longo do tempo, que as grandes almas estão acima das religiões. Gandhi não era cristão, mas é referência para todos nós. E aprendi também que religião não faz alguém bom ou mau. Essa é uma questão de arbítrio, de livre escolha, de inclinação para esse ou aquele caminho

Aos cristãos devo lembrar que Jesus era absolutamente inclusivo. Ninguém iria se perder no seu reino. O Bom Pastor deixava bem guardadinhas suas noventa e nove ovelhas e partia em busca da que se extraviou. Por que ele faria isso? Porque o rebanho, o seu rebanho, só estaria íntegro quando as cem ovelhas estivessem reunidas, sem isso não haveria felicidade possível. E no rebanho teria de tudo, gregos
e judeus, escravos e senhores, negros e brancos, gente de toda nacionalidade e religiões, bons e maus maridos, abecedistas e americanos, os bons e os maus. Enfim, até por uma questão de esperteza, deveríamos colaborar para que todos se tornem, um dia, pessoas de bem.

Lembremos o poema de John Donne. Está no frontispício do livro de Hemingway, 'Por Quem os Sinos Dobram': “Nenhum homem é uma ilha. Todo homem é um pedaço do continente, uma parte do todo. Se um torrão de terra for levado pelo mar, a Europa fica diminuída, como se fosse um promontório, como se fosse a casa de seus amigos ou a sua própria; a morte de qualquer homem me diminui, porque sou parte da humanidade. Portanto, nunca pergunte por quem os sinos dobram, eles dobram por ti.

2 respostas para “OS SINOS DOBRAM POR QUEM?”

  1. Didi Avelino disse:

    Que linda crônica ! Um primor.
    Parabéns, Nilo Emerenciano.

  2. Maria do Rosário Lima disse:

    Documentário ricos.

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