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junho 2, 2024

O MENINO E O CIRCO

Marcos Teixeira – Crônicas Quotidianas – (Colaboração José Amauri Freire) Naquela tarde de sábado, estávamos nós, jogando castanha ao aceiro do terreiro.

Marcos Teixeira – Crônicas Quotidianas - (Colaboração José Amauri Freire)

Naquela tarde de sábado, estávamos nós, jogando castanha ao aceiro do terreiro. Eu e meu irmão. De repente, ouvíamos gritos estridentes vindos da parte baixa da comunidade, como se viessem estrada à fora.

Atinamos os ouvidos na busca de interpretar de que se tratava e percebemos que a cada minuto, parecia se aproximar mais e mais.

Em dado momento interpretamos algo com maior clareza. Eram gritos que diziam:

- “Hoje tem espetáculo”?

A resposta imediata.

- Tem sim senhor!

- E o palhaço quem é?
- É ladrão de mulher!”

Eram gritos, algazarras e um esforço para repetir o trecho da música entoada pelo interlocutor.

-“Pompeu, Pompeu,
- Tua mãe morreu!
- E a cabeça do palhaço?
- O cupim comeu”!

Ao alcançar de vistas, percebemos um homem magro, alto, vestido com roupas pouco elegantes, com a cara pintada e um nariz avermelhado como uma bolota, se equilibrando sobre duas enormes pernas de pau. As pernas de pau o faziam mais alto ainda, claro. E ele, na graça do personagem, era quem entoava essas cantigas, enquanto um grande grupo de meninos, respondia em uníssono a suas perguntas, as vezes inocentes, as vezes pejorativas, as vezes de duplo ou até de triplo sentido.

Esquecemos as castanhas, corremos para a beira da estrada interessados em ver de perto aquele espetáculo itinerante que não era comum na Cuité, dos anos 80.

Ao passar onde estávamos, o palhaço atirou algumas balas de mel e aumentou ainda mais nosso encantamento.

E continuou, estrada a fora:

- “Olha a nêga na janela!"
- Com a cara de panela.
- "Ela tem, mais eu não digo!"
- "Carrapato no “imbigo”.”
( hoje esse canto seria certamente censurado)

E seguiu a caravana em seu trabalho de anunciação.

Nossa vontade era ir atrás , mas as regras da casa não permitiam que fôssemos. Ficamos!

Era o circo que havia chegado em Cuité. A noite seria a estreia. Aquilo nos fez idealizar um mundo de ilusões, e a partir dali, não pensávamos em outra coisa , a não ser no circo.

A noite, pedimos para mãe para irmos para a rua, e ela, sempre prudente, passou a tarefa de autorizar a expedição para pai. Pai deixou que fôssemos, mas com uma condição: estar em casa as 9h.

Nessa tarde, não demos trabalho para tomar banho, como era de costume. Cedo estávamos prontos e logo depois do jantar, saímos entusiasmados para a rua de Cuité, onde estava o circo.

Chegamos cedo. O circo era na verdade um círculo. Cercado de arame farpado num primeiro lance. Depois do arame, um circulo fechado por tecido branco-amarelado que deixava transparecer serem a união de sacos de açúcar mau costurados um ao outro, com agulha de mão. Em alguns deles, menos surrados, lia-se claramente: Usina Estivas S/A.

Não tinha cobertura. Era o que no dialeto circense chamam de “pano de roda”.

Logo à frente, um corredor feito de estacas finas e arame farpado, mais juntos que o necessário, dava acesso a entrada principal. Nela estava um homem, baixo, moreno, pouco calvo que fazia em esforço para demonstrar cara de mau, mesmo que víssemos que era boa pessoa. Ele recolhia os bilhetes que eram comprados por dois cruzeiros na “BILETERIA”(era assim mesmo que estava escrito). Uma lasca de tábua de madeirite, pintada a mão de forma grosseira, com cores vivas e a cara de um palhaço, mal desenhada.

As pessoas se agachavam, olhavam pela brecha intencional da tábua e compravam seus bilhetes de acesso ao deslumbramento.

Entre a cerca e a empanada, um senhor, já de meia idade, passava de vez em quando com olhar atento. Parece que vigiava para que algum menino mais saliente não tentasse entrar sem pagar a senha. Vale me dizer que ele estava com um boné branco, já surrado, onde se lia claramente em letras garrafais azuis: Para prefeito: Miro, 22.

Eu e meu irmão olhávamos atentos cada detalhe. Pelo pano do circo, víamos como numa penumbra, as pessoas se movimentando na área de dentro. Não com clareza. Era como se fosse uma sombra. E por fora, a cada dez minutos, um alto-falante , mais baixo que o convencional, anunciava... “Dentro de dez minutos daremos inicio ao espetáculo!”

E realmente foi!

Com menos espectadores do que o que esperavam os artistas, o circo fechou a bilheteria, fechou a entrada e lá se foram os que ali trabalhavam, para suas vestes circenses, imagino.

Uma voz rouca prenunciou: “respeitável público, nesse momento daremos inicio ao espetáculo. E para receber vocês com alegria, nossa baiana Rosali. Ai vem ela com seus oitenta quilos de rebolado!”

Ouviu-se um trovão de palmas e assovios e ao som de uma lambada instrumental dos Populares de Igarapé Mirim, parecia que a mulata dançava conforme o prometido.

Era só o começo!

Vieram o mágico, o malabarista, o atirador de facas , a mulher barbada... Era um escarcéu só. Aplausos, vaias, assovios, grito. Tudo fazia-nos imaginar que lá ocorriam traços do mundo ideal para toda criança de nossa idade.

O apresentador anunciou com voz marcante:

- E agora , recebam com aplausos o nosso palhaço Buliçoso!

Foi mais um trovão de vivas!

Ouviam-se as peripécias vocais de “Buliçoso”, interagindo de forma pouco respeitosa com o público. Às vezes até em linguagem inadequada para as crianças e desrespeitosa com as senhoras...

Tudo aquilo era acompanhado por mim e por meu irmão, de longe. Sentados na calçada do bar de Zé Maria. É que apesar de ir ao circo, nós não tínhamos dinheiro para entrar. Era Novembro, mês de castanhas, mas as nossas só seriam vendidas em Janeiro, para comprar o sapato da festa de São Sebastião.

E de repente , alguém perguntou a hora para o dono do bar... Ao que respondeu: faltam dez pras nove!

Para nós dois, acabou-se o espetáculo!

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