O FILHO DE DONA LIA
Ana Cláudia Trigueiro – Psicóloga e escritora Todas as vezes que dona Lia passava pela rua com o filho era a mesma novena: parava à porta da nossa casa e batia palmas.
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Ana Cláudia Trigueiro - Psicóloga e escritora
Todas as vezes que dona Lia passava pela rua com o filho era a mesma novena: parava à porta da nossa casa e batia palmas. Vovó Francisca saía da cozinha enxugando as mãos no avental (ela estava sempre preparando algo para comermos).
- Entre, Lia.
- Não vamos demorar, passei só para lhe pedir a receita do bolo de liquidificador.
A vizinha da rua de cima entrava, sentava em uma das cadeiras brancas da área e se punha a ouvir vovó explicar a receita do bolo. Enquanto isso, seu filho de dez anos se espichava feito lagartixa até o quintal.
Subia em uma das árvores: goiabeira, gravioleira, caramboleira ou mangueira, e comia as frutas, como se não tivessem uma dona a quem ele devesse pedir permissão. Dona Lia nunca soube, mas vovó enervava-se com o que considerava ser uma falta de educação do menino.
- Esse seu filho é um danado hein, Lia?
E sorria amarelo na esperança que a mãe ralhasse com Zeca e o trouxesse para perto de si. Mas a vizinha parecia não compreender a indireta.
- Demais dona Francisca! Não para quieto. Agora deu para ir à praia sem minha autorização. Um perigo se afogar. Por isso, agora quando saio, levo ele junto.
Eu seguia o menino e me postava junto a árvore lançando olhares raivosos em sua direção. Ele fingia não perceber, por isso, à certa altura, eu dizia baixinho:
- Desce daí!
- Não!
- Desce já!
- Tu não manda em mim!
- Bobo!
- Besta!
- Mal educado!
- Mil idiquidi... remedava ele, rindo da minha chateação.
Ah, como eu tinha raiva daquele garoto! Como ele podia desconsiderar a mim e a minha, avó, quando era nítido que sua correria desabalada para o nosso quintal, nos desagradava?
Um dia resolvi subir na mangueira e sentar no mesmo galho em que ele se deliciava com uma suculenta manga espada.
- Tua mãe não te deu educação, não?
- Deu.
- Então por que fica pegando o que não é teu?
- Tem muita fruta aqui, se eu não pegar vai estragar. E como se fosse um pequeno e altivo proprietário, arrancou a manga madura do galho e me entregou: "Tó. Pode chupar..."
Senti-me ultrajada com aquela atitude, e do alto dos meus oito anos dei um tapa na mão dele, deixando cair a manga que se esbagaçou no chão.
- Eu chupo a hora que quiser, a manga é da MINHA avó!
Pela primeira vez feri os brios de Zeca. O sorriso sumiu dos seus lábios, as sobrancelhas se uniram em uma expressão grave. Ele desceu da árvore, jogou o resto da manga na lixeira ao lado do tanque, lavou as mãos na torneira e foi para perto de dona Lia.
A partir daquele dia, ele não mais correu para o quintal, permanecendo impaciente ao lado da mãe, durante as visitas.
Um dia em que a goiabeira se encontrava carregada, me postei à porta da sala que dava para a área, olhei para ele e fiz repetidos gestos com a cabeça em direção ao quintal, tomando cuidado para vovó não notar.
Em pouco tempo Zeca compreendeu o convite e me seguiu. Tiramos algumas goiabas amarelinhas de maduras e as comemos, parando de vez em quando para observar os ninhos de bem-te-vis construídos sobre as vigas da varanda.
Na cozinha, vovó mostrava a dona Lia, os diversos bicos de confeitar que usava para decorar os bolos das encomendas. De vez em quando olhava-nos. Um olhar que misturava censura e consentimento.
…e fomos felizes para sempre?
Fora esse o desfecho? 🤣