Jornalismo com ética e coragem para mostrar a verdade.

maio 27, 2024

O consumismo consumidor

Pe.

Pe. Matias Soares - Pároco da paróquia de S. Afonso M. de Ligório - Natal-RN

O consumismo da nossa Era está a consumir a condição humana. Por isso, ele é um consumismo que consome. O que estamos a viver é uma forma neurótica de viver, que para quem é ‘objeto’ – os consumidores – do sistema capitalista torna-se cada vez mais um ser bulímico, que é devorador de bens de consumo e é teleguiado a descarta-los o quanto antes possível, tendo em vista comprar mais, mais e mais... Esse modo de vida fomentado pelo capitalismo é parasitário (cf. Z. Bauman) por ser sugador das suas presas, que são os que se submetem àquela lógica. Ele despersonaliza o sujeito, tornando-o um número sem rosto e sem nome. O mercado determina, mesmo que com a defesa incondicional de uma ‘liberdade’, o estilo de vida dos consumidores vorazes e compulsivos. As necessidades não existem, elas são criadas constantemente. A satisfação é uma eterna insatisfeita. O vazio existencial gerado pelo consumo de coisas e de pessoas feitas objetos é o evento que faz parte da sociedade do consumo e dos espetáculos.

O consumismo na pós-modernidade tornou-se uma questão de cultura. Ele está entranhado no estilo de vida da sociedade contemporânea. Consumismo e contemporaneidade estão interligados. O que é construção desta ‘nova ordem sistêmica’ (cf. N. Luhmann) nos nossos dias surgiu com a mão invisível do mercado e a supremacia da liberdade individual e, através delas, do fortalecimento do capitalismo. Temos facilidade em falar do direito à liberdade; mas, com o fortalecimento da penetração das mídias na vida e ‘consciências’ dos indivíduos, a mesma foi aprisionada. Que contraditório! A mecanização das nossas vontades acontece diuturnamente, nos tornamos condicionados a comprar e colocamos o ‘sentido da vida’ no adquirir objetos e utensílios que na maioria dos casos não são essenciais. O que aparece aos sentidos e, por eles, às nossas ‘fantasias’ (cf. S. Tomás. “De anima”, Q. I) é que a felicidade não está no que você é e significa, enquanto “ser humano constituído de integração entre alma e corpo”; mas no seu poder de compra e de obtenção de coisas. 

O capital especulativo também já pode ser considerado nesta lógica macroeconômica; contudo, esse é mais voltado para os que vivem em função da produção de riqueza. Não oferecem bens, nem trabalho, tornando o questionamento sobre as finalidades das riquezas e suas taxações, algo a ser considerado pelos Estados. O nosso foco é de fato, o sentido do consumo e suas consequências para a existência individual, comunitária e ecológica. Pontuo que não somos mais ‘homens naturais’. O naturalismo descrito por J. J. Rousseau não tem mais lugar na maioria das civilizações. Ainda há alguns casos localizados. Todavia, já não temos como retroagir a este estilo de vida. O nosso desafio é propor e mostrar que a dinâmica do consumismo ‘totalitário’ gera desordem na estrutura psicológica e ambiental da humanidade. Os acontecimentos estão no nosso dia-a-dia e ratificam o que a ciência e tantas lideranças estão a denunciar, dentre elas o Papa Francisco (cf. Laudato Si, 20-22). Esse consumismo agride a vida da maioria das pessoas, principalmente das mais pobres, e violenta passo-a-passo a nossa Casa Comum.

Há a urgência de estilos de vida mais sóbrios. A neurose causada pela ideia de que a felicidade está em nosso poder de compra e consumo, tende a ser cada vez mais tonificado; contudo, estamos entrando numa nova Era da história da humanidade. O que a inteligência artificial, com suas muitas possibilidades, terá a nos oferecer num futuro não tão distante, já nos coloca em situação de ‘ansiedade’. A tecnociência, com suas pós-narrativas, pós-humanismos e outras possibilidades, também nos trará outras formas de consumo. A pedra de toque na consideração de proposições sempre antropocêntricas será o como teremos capacidades de ‘discernir’ e escolher o Único Necessário. Quem será ou o que será a nossa necessidade? Onde colocamos a razão de ser da nossa Esperança? Não é irrelevante que esta virtude – teologal – seja uma das referências da teologia e das ciências humanas contemporâneas (cf. J. Moltmann. “Teologia da Esperança”; Bento XVI. “Spe Salvi”; E. Bloch. “Princípio Esperança”; E. Fromm. “A revolução da esperança”).  

Nesse aspecto, cabe a reflexão feita pelo Papa Francisco na Alegria do Evangelho: “O grande risco do mundo atual, com sua múltipla e avassaladora oferta de consumo, é uma tristeza individualista que brota do coração comodista e mesquinho, da busca desordenada de prazeres superficiais, da consciência isolada. Quando a vida interior se fecha nos próprios interesses, deixa de haver espaço para os outros, já não entram os pobres, já não se ouve a voz de Deus, já não se goza da doce alegria do seu amor, nem fervilha o entusiasmo de fazer o bem. Este é um risco, certo e permanente, que correm também os crentes. Muitos caem nele, transformando-se em pessoas ressentidas, queixosas, sem vida. Esta não é a escolha duma vida digna e plena, este não é o desígnio que Deus tem para nós, esta não é a vida no Espírito que jorra do coração de Cristo ressuscitado” (cf. EG, 2). A demanda do consumo tem essa conta, que não é colocada na responsabilidade de quem defende a necessidade do consumismo. Sem a atenção ao primado da dignidade das pessoas, sua vida e história de realização integral e integradora da existência, com um paradigma de desenvolvimento sustentável, o consumismo continuará a ser predador da felicidade de cada ser humano e destrutivo gradativo da Criação. Um outro projeto civilizatório é urgente e possível. Lutemos por ele. Assim o seja!

Os comentários estão desativados.