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dezembro 17, 2023

NO ESCURINHO DO CINEMA

NILO Emerenciano – Arquiteto e escritor O cinema já voltou suas atenções para si próprio, em belos trabalhos como Cinema Paradiso, de Giuseppe Tornatore, uma homenagem lírica e nostálgica à magia da sala de projeções de um cineteatro.


NILO Emerenciano - Arquiteto e escritor


O cinema já voltou suas atenções para si próprio, em belos trabalhos como Cinema Paradiso, de Giuseppe Tornatore, uma homenagem lírica e nostálgica à magia da sala de projeções de um cineteatro. A gente mais nova jamais vai conseguir entender o que representou, para nós, a turma dos anos setenta, a sétima arte, quando havia o slogan “cinema ainda é a maior diversão”. E era

Kleber Mendonça, após os bem-sucedidos filmes Aquário e O Som em Redor, fez o Retratos Fantasmas, indicado para concorrer ao Oscar representando o Brasil. O documentário começa como uma autobiografia, mas na segunda parte passa a abordar a decadência do centro do Recife e principalmente de seus cinemas, representantes de uma época de esplendor. Me emocionou.

Vi filmes em todas aquelas salas, algumas suntuosas, como o São Luís e o Veneza. Explico: metade da minha família é recifense, e, portanto, meus pais me levavam – uma vez de trem! - a visitar o que na época era uma bela cidade, cheia de rios e luzes refletidas em suas águas.

Cine São Luís uma dos melhores cinemas do Recife em termos de projeção e conforto para o espectador

Seu Amaury, meu pai, me apresentou a literatura dos pernambucanos Manoel Bandeira, Carlos Pena Filho, Ascenso Ferreira, e mostrava com alegria a placa que havia no bar Savoy: “Por isso no bar Savoy/ o refrão tem sido assim:/ são trinta copos de chopp/ são trinta homens sentados/trezentos desejos presos/ trinta mil sonhos frustrados.”

Estudei ali, às margens do rio Capibaribe, em plena rua da Aurora (Aurora da minha vida/ que os anos não trazem mais). Da janela da sala de aula eu ficava a olhar as águas calmas do rio e do outro lado a rua do Sol.

Então? A gente olha e não vê, é preciso a sensibilidade do artista para chamar a nossa atenção. Triste, muito triste, o estado dos prédios do Trianon, Art Palácio, São Luís, Veneza. Pensar em todas as gerações que passaram por ali, os sonhos, as fantasias, os romances, os namoros iniciados naquele escurinho…

E para mim, acostumado com nossos modestos cinemas, tudo aquilo era era um deslumbre. Tínhamos apenas o Rex, em plena Av. Rio Branco; o Rio Grande, enorme, na Av. Deodoro; o Nordeste, único climatizado, o friozinho entrando pelo nariz causando cócegas; O Poti, próximo da minha casa, onde via dois a três filmes por semana. Com o troco do ingresso comprava dois cigarros Elite. Fumava um antes e o outro depois da sessão (pois é, fui burro também e fiz essa besteira).

Cine Nordeste (Natal/RN) - Foto: Brechando

Não sou tão velho, mas estive na inauguração do Panorama nas Rocas, tela curva ao rés do chão.
O filme foi o Satânico Dr. No, o primeiro de James Bond. Na mesma semana o mercado público da cidade alta incendiou, no que foi uma das nossas grandes tragédias. E os seriados? Todos os domingos o Rex exibia um filme em preto & branco antiquíssimo – que bom! Assim vi Rocky Lane, Hopalong Cassidy, Monte Hale e os doidelos, como a gente chamava os companheiros atrapalhados dos mocinhos.

Cinema Rex (Natal/RN) - Foto: AssessoRN.com

Após o filme vinha mais um episódio da série. A gritaria era infernal. A meninada soltava os pulmões a cada aparição do herói sempre em perigo ou salvando a mocinha indefesa (pois é, as mulheres de então eram frágeis e indefesas, a não ser Nyoka, a Rainha das Selvas, versão feminina de Tarzan).

O que falar dos primeiros e difíceis namoricos? Já vejo o riso irônico da geração descolada. Mas é, os namoros eram complicados, escondidos dos pais das meninas sempre vigilantes. Uma vez fui surpreendido por um desses pais ciumentos que entrou no cinema e se sentou na cadeira atrás da minha.

Senti o cheiro de birita e cigarro e a mão batendo no meu ombro: - É minha filha! Ah, fazer o quê? O mocinho aqui não ia enfrentar o vilão biriteiro. A moça se levantou e mudou de lugar. E o galã precoce saiu cabisbaixo, mas feliz por escapar ileso.

Meu gosto por cinema fez com que perdesse uma namorada bonitinha. Fomos escondidos, claro, ver uma fita, e por azar era um filme ótimo. A menina passou a sessão toda querendo trocar amassos e eu não conseguia despregar o olho da tela. O bestão aqui não se tocou que o filme podia ser visto em outro dia, mas aquela oportunidade, não. Levei um fora merecido.

Mas a do cinema Rex foi mais terrível ainda. Quem lembra sabe que havia um espelho enorme em frente à entrada e podia-se escolher entre seguir à esquerda ou direita (não é o que estão pensando). Pois a namorada da hora foi em frente e ficou forçando a cara e o nariz contra o espelho. Dava pra controlar o riso? A moça se ofendeu, quis devolver o dinheiro do ingresso e manteve-se longe de mim. Eu era assim. Perdia uma namorada, mas jamais a oportunidade de uma boa risada.

Dá pra entender agora por que o Retratos Fantasmas calou fundo em minhas lembranças. Caminhar no Grande Ponto é sempre bom, mas agora também é muito triste. Rex, Nordeste e Rio Grande se foram. O Rio Grande, acho, é hoje uma igreja evangélica. O Rex uma loja. E do Nordeste ainda resta o prédio, mas não tenho ideia do que funciona ali. Até porque a vizinhança não é nada atrativa. O mesmo se pode dizer do São Luís, no Alecrim e do Panorama, nas Rocas. O cine Poti da minha adolescência foi depois as oficinas do Diário de Natal.


Uma cidade é feita de sonhos, pessoas e lembranças. Mas como disse, não dá pra imaginar o prazer de sair do cinema e ir para a praça das Cocadas conversar sobre o último Fellini ou Antonioni. Ou o impactante Glauber Rocha. E sonhar em mudar o mundo.

Quem viu, viu. Quem não viu, nem sequer sonhou.

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