INVENCIONEIROS E LINGUARUDOS
NILO Emerenciano – Arquiteto e escritor Sempre gostei de conversar com gente mentirosa.
NILO Emerenciano - Arquiteto e escritor
Sempre gostei de conversar com gente mentirosa. Mentirosos do bem, claro. Diferente, bem diferente, de intrigantes e caluniadores. Esses urdem intrigas para prejudicar, espalhar suas invejas e rancores. Desses, quero distância.
Os do bem são inofensivos, divertidos, criativos. Graciliano Ramos percebeu isso e criou o personagem Alexandre, no livro Histórias de Alexandre (1944) que ele destinava ao público infanto-juvenil. Alexandre era um sertanejo alto, magro, olho torto (essolho também tem uma história), contador de histórias mirabolantes, tendo sempre ouvintes atentos temerosos de contrariá-lo, até porque sua mulher Cesária está sempre a postos para confirmar seus relatos.
Percebem a semelhança com o personagem de Chico Anísio, o Coronel. Pantaleão e sua esposa Terta, essa sempre batendo o martelo: “- Verdaade!”
Em O Coronel e o Lobisomem (1964), de José Cândido de Carvalho, o coronel Ponciano de Azevedo Furtado conta uns casos divertidos, o melhor deles sendo o do galo de briga – Vermelhinho Pé de Pilão - que está “entregando” uma briga só pra não estragar o namoro do coronel.
Ou o caso de um jacaré “meu conhecido dos dias passados”. O tal jacaré fumava charutos Flor de Ouro e tocava flauta: "- Jacaré escolado, bicho instruído”. O coronel Ponciano desde menino já mostrava a que veio. É seu avô que percebe: “- Esse menino tem todo o sintoma do povo da política. É invencioneiro e linguarudo.”
Ah, mentirosos maravilhosos. O mais conhecido deles talvez seja o barão de Münchhausen, que teve os casos exagerados que contava reunidos em livro As Loucas Aventuras do Barão de Münchhausen (1785). O barão viajava pelo ar sentado em balas de canhão e saia de pântano puxando os próprios cabelos.
Na minha rua havia um vigia, Seu Miguel, exímio contador de histórias. Os meninos sentavam ao redor e ele, estimulado, falava de batatão, lobisomens, mula-sem- cabeça, caipora, tudo de casos vividos. Só depois descobri que o tal batatão era o boitatá, uma cobra de olhos de fogo.
Na versão de Seu Miguel era um fogo que corria atrás das pessoas. Ele contava que era fácil virar lobisomem. E explicava como, pois lá na sua terra um morador amarelão e esquisito andou assustando as pessoas até ser descoberto. Nunca acreditei muito naquilo tudo. Já a caipora assobiava no ouvido de quem entrava no mato pra caçar sem levar fumo para o seu pito. Fazia tranças na crina dos cavalos e levava medo às crianças traquinas.
A cereja do bolo foi uma noite ele dizer que criava um Saci em casa, pequenininho, no fundo do quintal.
Minha mãe era minha consultora: - Mamãe, eu quero um Saci!, eu gritei ao entrar em casa. Minha mãe, dona Penha, sorriu, passou a mão na minha cabeça e só disse que ainda ia proibir a gente de conversar com Seu Miguel…
Dona Neném era uma viúva que mamãe conheceu na Igreja. Vestia-se toda de negro, inclusive as meias longas. Vinha do interior e ia pra minha casa fazer hora até pegar o ônibus de volta na rodoviária da Ribeira. Filava o almoço e mentia pelos cotovelos.
Meu pai se divertia. Colocava uma dose de cachaça e oferecia a dona Neném quando mamãe não estava perto. A viúva pegava o copo, olhava para um lado e outro, ia até a porta do quintal, fazia o sinal da cruz com o copo que levava na mão e recitava: -“Em nome do Pai, do Filho, do Espírito Santo, amém. Que não me faça mal, mas que não me faça bem!” E emborcava a pinga goela abaixo de uma vez só.
Perguntei a papai o porquê do não me faça bem. - Para não viciar, meu filho. E com um meio-sorriso no canto da boca: -Ela é uma viúva decente.
O bom mentiroso tem que ter cara-de-pau e fazer cara de paisagem quando duvidam dele, pois sempre tem alguém sem sensibilidade para captar o espírito da coisa e com mania de meter o bedelho nas conversas. Geraldo era assim. Cofiava o bigode para mostrar o anel de advogado espetado no dedo e iniciava uma história. "-Neguinho, quando fui delegado lá em…Tinha isso também. Geraldo parecia ter tido uma porção de empregos. Somando tudo ele precisava ter de idade uns 120 anos, pelo menos.
Contava que dobrava barras de ferro. De tanto mentir virou galhofa. Quando chegava o velho Adílio ia avisando: "- Geraldo, não venha dobrar barra de ferro, não". Pensam que ele se incomodava? Emendava logo uma nova história como a do sósia que encontrou em Salvador. “- Neguinho, até essa cicatriz que eu tenho aqui na testa, tá vendo? O cara tinha também.”
Pois é. mas o que são os escritores senão grandes mentirosos? Ou você acha crível uma jovem mulher se passar por jagunço em meio a um bando de bandoleiros como Diadorim, em Grande Sertão? Um defunto beber cachaça e farrear a noite inteira como Quincas Berro d’Água? Os mortos saírem do cemitério por causa de uma greve dos coveiros como em Incidente em Antares? Ou um morto contar a sua história,
como Machado de Assis fez em Memórias Póstumas de Brás Cubas?
Acha possível alguém construir um balão como um pavão para raptar uma donzela como está contado em O Pavão Misterioso? Pois então. Viva esses mentirosos maravilhosos e suas histórias fantásticas que enriquecem as nossas vidas e enfeitam de flores a estrada que percorremos. Como Cafifa, sapateiro lá na rua Felipe Camarão cansado de ouvir um faroleiro a contar vantagens do seu canário. "- O meu também faz tudo isso", falou. - Onde ele está? Perguntou o mentiroso. - Fugiu, Cafifa respondeu. "-Voou com gaiola e tudo".
Como já disse alguém: - A formiga não dança porque nunca pôde aprender.
Gostei imensamente dessa conversa dos mentirosos, embora não os vejo como tal, mas extremamente criativos. De mentes fantasiosas que divertem! Parabéns pelo foco do seu artigo!