FELIZ ANO VELHO
NILO Emerenciano – Arquiteto e escritor De uma coisa tenho certeza: os costumes hoje são mais refinados, para não dizer sofisticados.
NILO Emerenciano - Arquiteto e escritor
De uma coisa tenho certeza: os costumes hoje são mais refinados, para não dizer sofisticados. As famílias de classe média conhecem vinhos, queijos, taças e pratarias adequadas a cada tipo de prato servido, sabem os talheres para queijos, peixes, carnes e por aí afora.
Assistem Master Chef ou um entre as dezenas de programas de TV que ensinam os princípios do que imaginam ser alta cozinha. E haja condimentos que até algum tempo nós nem sabíamos da existência, como sal do Evereste que a gente boba acredita que vem mesmo do Himalaia, substituindo nosso bom e velho produto vindo das belas salinas de Macau e Areia Branca.
Nada contra, cada um faz o que bem quer da sua vida e do seu dinheiro. Até queimá-lo em fogos de artifício, se for do agrado. E se vestir de branco, não sei para que, ou de amarelo para atrair mais dinheiro, e se embriagar para entrar o ano nesse estado alterado de consciência. Há os que saúdam Iemanjá, sem saber que a deusa é negra e tem seios fartos – ou vocês achavam que uma orixá africana seria branca como a estátua da praia do Meio?
Éramos mais simples, e não me arrependo disso. O queijo do reino e um champanhe (nada de espumante, isso é outra coisa besta de hoje em dia) era o máximo que nos permitíamos. E sempre rindo do estouro da rolha e das bolhinhas estourando no nariz. Um bacalhau também vinha bem. Mas o essencial era reunir a família, dar risadas até mesmo das piadas bestas do tio do pavê, tentar criar frases bonitas como se nunca tivessem sido ditas, desejando um ano novo feliz para todos. E à meia noite era a trocação dos abraços escondendo a emoção.
Não imaginávamos, ou pelo menos eu não imaginava, a importância daquilo tudo, e como era bom ter a família reunida, pais e avós, filhos e sobrinhos. Eu não sabia também que aqueles eram os melhores anos das nossas vidas. Árvore de Natal que só seria desarmada após o dia 6 de janeiro, dia de Reis, e embalada cuidadosamente para estar inteira no próximo Natal. Presépio, que a cada ano crescia com a chegada de novos componentes, ovelhas, burricos, patos na lagoa, e todo o tipo de bonecos que surgisse porque nosso presépio era extremamente democrático e pan-religioso, artes da minha mãe.
E tínhamos certeza de que o novo ano seria melhor, nos traria alegrias e conquistas, e o país acertaria, enfim, o seu caminho.
Hoje somos mais rodados o que não quer dizer mais sábios. Mas alguma coisa aprendemos, como não? Somos céticos quanto ao tal do ano novo. Sabemos por exemplo, que para nossos hermanos argentinos o ano vai ser de sacrifícios e de perda de liberdades, mas foi isso que eles escolheram nas urnas, iludidos por um farsante que conversa com um cachorro morto e ouve seus conselhos. Nosso exemplo recente não lhes ajudou em nada.
E a população de Gaza, o que a espera? Sangue, suor, lágrimas e mortes, muitas mortes. Mortes de civis, homens, mulheres e crianças, 420 crianças por dia sob tiros e bombardeios. Crianças que deveriam estar vivas, brincando, correndo atrás de bola, empinando pipas. E o povo da Ucrânia, como será que vai entrar o ano novo? Brindando?
Pois é. Acho que fiquei pessimista depois de passar pela avenida das Alagoas e ver aquelas dezenas de barracos abrigando famílias inteiras que todos os anos surgem de algum lugar para mendigar donativos. Como fingir ignorância? Onde aquelas pessoas se banham e satisfazem as necessidades básicas, hoje numeradas, números 1 e 2? E como será que se viram o resto do ano?
Um bom exercício talvez seja procurar saber das mudanças climáticas que atingem o planeta e principalmente nossos indígenas e os mais pobres, mas que a curto prazo atingirá todos nós.
Acompanhar os escândalos quase diários que envolvem padres católicos e pastores protestantes, seja por dinheiro e ganância, ou por desvios de conduta na área da sexualidade, também é desestimulador. Afinal, deveriam ser condutores de almas, jamais aproveitadores das fraquezas dos espíritos frágeis que buscam amparo. E mais ainda, seguidores do Cristo que deveriam ser, emporcalhando as instituições a que pertencem.
Não há como ignorar que a cada dia, em nosso país, 38 pessoas atentam contra a própria vida, indo contra a lei natural que nos fala da autopreservação e do instinto de sobrevivência que deveria nos nortear. E que milhares se entregam a uma morte lenta, fugindo da existência e passando a existir como zumbis, fumando crack ou outras drogas (a cada dia surgem novos tipos).
Fico por aqui. Como estava dizendo, os costumes são mais refinados, mas nossos problemas são os mesmos ou talvez mais graves que há alguns anos. O que nos resta fazer, rasgar as roupas e atirar cinzas sobre o corpo como faziam nos antigos textos bíblicos? Ou reclamar ao bispo?
Claro que não. Nos resta acreditar sempre e ir à luta, fazendo a nossa parte. Então também, como todos, desejo um Ano Novo feliz para mim, para vocês e para nosso país. Saúde e paz!