Em nome do santo

fevereiro 26, 2023

Nilo Emerenciano – Arquiteto e escritor Minha mãe usava umas expressões muito peculiares.

Nilo Emerenciano - Arquiteto e escritor

Minha mãe usava umas expressões muito peculiares. Alguma coisa distante ficava na caixa-prego, ou caixa bozó. Coisas velhas eram comparadas ao farol de Olinda: mais velha que o farol de Olinda, dizia. Gente que conversava demais, ou seja, tagarela, ela afirmava falar mais que o homem da cobra. Entendam: antigamente havia homens que iam para a rua com uma cobra enrolada no corpo para chamar a atenção das pessoas. Uma vez reunido um grupo em redor ele passava a oferecer o seu produto, geralmente uma pomada que curava tudo, de erisipela a impotência, usando de uma conversa interminável.

Aquele cidadão que me atendia era assim, feito o homem da cobra. Acho que viu meus cabelos brancos e identificou um interlocutor perfeito. E mais, deve ter visto no meu cadastro um curso que eu fiz na UERN de religiões comparadas. Aí, enquanto me atendia, começou a conversar, usando como gancho o desfile da Mangueira, nossa Verde e Rosa.

- E aí, viu a Mangueira saudando os orixás e babalaôs? Foi muito lindo. Gosto muito disso tudo, mesmo sendo da religião de Kardec, mesa branca e tudo mais.

Senti um arrepio quando ele falou em mesa branca e principalmente em tudo mais, seja lá o que estivesse querendo dizer. Assenti com a cabeça e ele continuou.

- Pois é, minha corrente (outro arrepio) é também dos orixás. Sabe como é, desde menino que eu vejo e ouço coisas e as pessoas já falaram que eu era médium. Aí minha mãe, que é espírita também, me levou num terreiro lá nas Rocas, de mãe Balbina.

Não quis contrariar o homem, afinal ele estava resolvendo meu problema com boa vontade, mas não me contive: - Sua mãe era espírita e levou você a um terreiro?

- Isso mesmo. Aí fizeram minha cabeça depois de um jejum de trinta dias. Usei roupa branca, mamãe comprou pombas e outros trecos. Foi bonito demais, se tivesse tempo eu contava.

Olhou para mim com ar cúmplice: - Você sabe, não é?

- Acho que sim, meio que confirmei, afinal o documento ainda ia demorar. – E depois, o que você faz hoje?

- Penso que eu tenho uma missão, pois sempre volto de um jeito ou outro. Mas foi uma mulher que eu tive, uma pomba-gira escrito, malvada, que forçou meus caminhos. Para me prejudicar ela fez um trabalho lá nas Quintas profundas, onde muriçoca voa de capacete tamanho os perigos, veja só.

Esse veja só era uma isca e eu caí com gosto. – E o que foi esse trabalho?

- Imagine que foi pra tirar minha macheza, me deixar incapaz para certas atividades. Não tirava a vontade nem o desejo, mas deixava sem poder concluir a coisa, entendeu?

- Virgem, foi grave, confirmei. E o que você fez?

- Ora, usei meus recursos. Voltei lá em mãe Balbina, cabisbaixo, e ouvi todos os carões do santo. - Bem feito, ele disse, mô fio largou de nós com essa história de mesa branca, agora volta jururu, sem a força do homem, pedindo ajuda. Não vai ser fácil, a mandinga foi bem amarrada. Feitiço de rabo-de- saia traída. E mô fio mereceu. Fez candonga da mulher, agiu como um perna – de- calça irresponsável. Mô fio vai fazer o que eu mandar bem direitinho ou adeus fornicação. 

Ora, fazer o quê? Concordei. Naquela situação eu fazia qualquer coisa. E veio chumbo grosso, de verdade.

- Mô fio vai comprar três garrafas de marrafo, sete velas de sete dias, uma galinha preta sem nenhuma peninha branca, mel de abelha e uma pombinha. Aqui eu preparo tudo e mô fio vai despachar dentro do cemitério, à meia noite, sozinho.

- E se a polícia aparecer, meu santo, ou um vigia?

- João Grosso vai acompanhar mô fio. Tenha medo não. Bote os olhos nos olhos da pessoa com firmeza. Ela vai ver a cara de João Grosso e não vai fazer nada.

- Fiz como ele mandou, tudo direitinho. O nó era o cemitério. Resolvi pelo cemitério da Vila de Ponta Negra, nesse tempo um lugar meio ermo. E fui tremendo de medo, mas tinha motivação para enfrentar tudo.

Correu tudo bem. Arrodeei o cemitério, procurei um canto de muro mais baixo, pulei com o ebó nos ombros e catei um túmulo mais no centro. Nisso eu ouvia assobios, assopro nos ouvidos, sussurros, passos, vultos passando entre os túmulos, mas fui em frente. Botei o despacho em cima do túmulo e aí ouvi uma voz: - Nesse não! Terá sido impressão ou efeito do medo? Coloquei na sepultura ao lado e ouvi novamente, dessa vez não tinha erro: - Nesse não! Foi demais pra mim. Joguei o despacho em cima de outro túmulo sem nem olhar, sem rezar, gritei, esse sim! e corri para fugir dali.

Mas ainda tinha de sair do cemitério. No escuro, assustado e desorientado, errei o lugar da entrada, mas aí tinha o apoio de um sepulcro junto do muro. Subi e quando coloquei a cabeça por cima, um rosto apareceu do outro lado, justinho em cima da minha cara, rente, a menos de dois palmos de distância. Era o vigia, claro, que tinha vindo olhar.  Tomei um susto tão danado que não sei como não caí dali de cima. A sorte é que o guarda também tomou um susto ao olhar a minha cara e correu feito um desesperado ladeira acima, e eu pude correr desabalado ladeira abaixo. Será que ele viu João Grosso?

O homem jogou um envelope na minha frente e disse, sorrindo: - Aí está. Demorou, mas saiu, não é? Agradeci, apertei a sua mão, e fui andando. Ele ainda falou: - Mas lembre-se, minha linha é a de Kardec. Não resisti, concordei e saudei: - Axé de Olorum! De pronto ele respondeu: - Olorum Axé!

E fui. Até esqueci de perguntar se a coisa fez ele recuperar a virilidade perdida.

Uma resposta para “Em nome do santo”