DONA DA FÉ

abril 16, 2023

Nilo Emerenciano – Arquiteto e Escritor A não ser pela possibilidade de um fim de semana prolongado, com a possibilidade de viagens ou alguns dias na praia, a Semana Santa atual quase não marca a vida dos cidadãos.

Nilo Emerenciano - Arquiteto e Escritor

A não ser pela possibilidade de um fim de semana prolongado, com a possibilidade de viagens ou alguns dias na praia, a Semana Santa atual quase não marca a vida dos cidadãos. Muitos nem sabem o que significa Domingo de Ramos, Quarta-feira de Trevas, nem nunca percorreram os caminhos de uma procissão.

Alguns dirão: mas isso são práticas medievais! Não importa, tem a sua magia, o seu encanto. Tenho dó de quem nunca ajudou numa missa, ou passou pelo ritual da primeira comunhão e o medo de – acidentalmente – morder a hóstia, pois ali era o corpo do Cristo que miraculosamente recebíamos sobre a língua.

Mais dó ainda de quem não presenciou uma Procissão do Encontro, na quarta-feira de Trevas, quando uma imagem do Nosso Senhor dos Passos conduzindo a pesada cruz, saía da Igreja do Bom Jesus das Dores, na Ribeira, e outra, de Nossa Senhora das Dores, seguia em cortejo para encontrar o filho, ali em frente à velha Catedral. No caminho o andor que conduzia o rabino da Galileia parava várias vezes para marcar os passos descritos na Via Crucis. Bons tempos, sem dúvida.

Ou nem tão bons assim, já que a gente era proibido de tomar banho, ouvir música, brincar e até de rir, a partir da Quinta-feira 'Gorda'. O jejum era brabo. Não só de comida – carne nem pensar, mas também de pensamentos, palavras e muito menos obras. Bares e cabarés (confira aí, Gutenberg) fechavam nesses dias santificados. A vida só normalizava no Domingo de Páscoa, quando rolava uma bela refeição com a família reunida em torno da mesa farta. Era uma data importante, de verdade.

Os adultos contavam no domingo as estripulias do sábado de aleluia, o roubo de galinhas no quintal de algum conhecido. O melhor da brincadeira, falavam, era convidar a vítima para comer, sem saber, da própria criação furtada do seu terreiro. Para nós, crianças, bom era malhar o judas, sem saber que praticávamos um ato de discriminação contra os irmãos judeus que carregam até hoje culpa milenar da morte de Jesus.

Demorei a entender algumas coisas. Uma delas é o que o coelho tinha a ver com a paixão do Cristo e onde o chocolate entrava na história. A outra, e essa me incomodava mais, é que no Velho Testamento a Páscoa (Pessach) celebra a libertação dos hebreus do jugo do Faraó e do seu exército depois de anos de escravidão no Egito, liderados por Moisés como havíamos visto em Os Dez Mandamentos, no Cine Rio Grande. No entanto nós comemorávamos a paixão, morte e, principalmente, a ressurreição do Cristo.

Estudei no Ginásio Salesiano São José e talvez um pouco por causa disso fui, sem perceber, me afastando do catolicismo e suas práticas. Guardo ótimas lembranças de alguns sacerdotes: padre Mário Daorizzi, padre Carlos, padre Thiago Havic e padre Tadeu esse, um doce de pessoa, sempre muito justo comigo.

Mas havia algumas 'ovelhas negras' no rebanho e a minha rebeldia de jovem não aguentava o interrogatório que me faziam no confessionário:

“- Fez alguma coisa com uma menina? E com um menino? E sozinho?”  

Eu, que nos meus 13 ou 14 anos não entendia patavina do que o padre falava, só queria contar das lagartixas ou rolinhas que matava com a baladeira ou nas mentiras que contava para minha mãe. Esses pecadinhos não interessavam aquelas cabeças deformadas. Foi quando passei a inventar pecados, outro pecado, claro, do qual não me arrependo.

Havia um padre velhinho, semi aposentado se é que padres se aposentam - o padre Tenório-, que tinha a função de cuidar da horta. O velho padre também era enviado para abençoar inaugurações de bancos, lojas ou coisas do tipo. Com ele a confissão era uma diversão pois os meninos provocavam contando haver surrupiado produtos da horta do bom velho. Eu, mesmo sem haver participado de nenhuma dessas incursões, inventei uma vez que havia roubado pimentões da horta. Foi o suficiente para o padre Tenório erguer-se e sair do confessionário aos berros:

- Perdoo não, seu cachorro, safado, vá embora!

Hoje, quando reavalio a minha ideia de Deus, fico a pensar: "se Ele, causa primária de todas as coisas, estaria preocupado com os pimentões do velho e bom padre Tenório tendo um universo inteiro para cuidar".

A Semana Santa me faz lembrar com alegria e saudades a minha mãe, dona Penha, católica fervorosa, ajoelhada no seu oratório lotadinho de santos, vela acesa, terço na mão, a fazer suas preces. Devota de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, nos ensinou a rezar o Santo Anjo do Senhor e o Ato de Contrição.

Dona Penha recebe o abraço do filho Nilo Emerenciano

E dizia que o meu santo era São Judas Tadeu, não me perguntem o porquê. Devo a essa doce criatura não me haver desviado para o caminho tortuoso da descrença e manter hoje, homem maduro que sou, uma fé raciocinada no Ser que nos criou.

Que Deus continue abençoando você, minha mãe. O meu amor e carinho só aumenta com o passar dos anos e imagino como será feliz o momento do nosso reencontro em algum lugar das muitas moradas do Pai. Sou só gratidão e ternura por tudo que você fez por mim.

Comecei falando sobre a Semana Santa e terminei lembrando uma santa mulher. Nada mais justo, acho, pois as santidades são feitas de pessoas simples, justas, corajosas e donas da fé.

Uma resposta para “DONA DA FÉ”

  1. Maria Assunção disse:

    D.Penha… que a sua fé esteja ainda maior !
    Estamos na Terra para aprimorarmos nossas virtudes.E Jesus nos ensinou, no ato da ressurreição, que nossa vida é eterna como espírito.E, no meu entender,seu maior legado é nos ensinar o perdão e o amor incondicional