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setembro 27, 2020

Crônicas do domingo Rocas Quintas: a única e verdadeira que Natal conheceu!

     Gutenberg Costa – Pedagogo, Bacharel em Direito, Escritor e Pesquisador.

     Gutenberg Costa – Pedagogo, Bacharel em Direito, Escritor e Pesquisador.          

O memorialista é aquele que com certa idade conta o vivenciou de fatos e do seu conhecimento com pessoas e lugares. Descreve o seu passado e o repassa acompanhado de sérios testemunhos e fontes fidedignas. Sabe-se que quem pesquisa história necessariamente é devorador de livros, cliente voraz de livrarias e ‘rato’ de sebos. Já os ficcionistas ficam isentos de veracidade histórica em suas criações, como nos seus contos e romances. Apenas alguns desses, retratam os seus personagens, que aos olhos dos bons observadores, logo enxergam pessoas existentes em seus tempos. Mesmos que mudem os seus nomes ou situações. Assim o fez nosso criativo Nilo Emerenciano, em muitos de seus contos.

           Dentro da paisagem urbana de Natal dos anos 70 a 90, do século passado, existiu de fato uma mulher prostituta e muito famosa conhecida por seu apelido – Rocas Quintas. Tímida, não aceitava ser entrevistada, mas aos poucos me concedeu curtos depoimentos em diversos momentos na então calçada do finado Café São Luiz, centro da Cidade Alta, no início dos anos 90, (1991): “Meu nome é Maria Edite. Estudei pouco na infância. Sempre fui uma menina traquina. Sempre gostei de fazer sexo desde mocinha. Eu quando era mais nova fazia ponto lá na Rua Quinze de Novembro na Ribeira. Numa noite atendia dezenas de homens nos quartos daqueles cabarés. Era uma cama velha, uma bacia de ágata ao lado, jarra d’água e sabonete para o asseio do casal. Era tudo na pressa e saia um e já se entrava com outro... homem de todo tipo, de cachaceiro a valentão, de jovem a velho... Hoje eu estou gorda e velha. Peço ajuda nas ruas, pois ando muito doente, meu senhor”. E mostrou-me na ocasião numa manhã de sol forte, meio dia, para comprovar seu pedido, uma parte de uma caixa de antibiótico onde se via o nome do tal remédio...

            Alguns até diziam ser o seu marketing de pedinte ambulante. Na ocasião, a famosa Rocas Quintas, já aparentava uns 50 anos. Cabelos pretos com algumas mechas em branco. Desdentada, mas risonha às vezes. Obesa, como diziam ‘com barriga quebrada’. Branca e semi analfabeta, pernas grossas e pescoço bem curto. Olhos castanhos claros, diferentemente daquela romanceada Capitu machadiana. Estava calçando sandálias havaianas já gastas de muitas andanças e peregrinações, vestindo saia vermelha já desbotada e uma blusa não tão branca, como deveria ter sido no passado. Saudade do milagroso ‘Omo total’ das propagandas televisivas.

Interior de um cabaré - Foto José Alves (Trabalho universitário 2008)

           Seu apelido apareceu primeiramente na história escrita, através do premiado contista e memorialista, Nilo Emerenciano, em seu livro de Contos – ‘Aconteceu na Quinta Delegacia’, (1982, FJA). Embora ele não diga o seu livro foi inspirado em alguns personagens populares que o autor conheceu de perto nas ruas de Natal. O grande amigo Nilo, como dezenas de outros natalenses, conheceu a verdadeira Rocas Quintas, que era também natalense. Segundo a mesma: tinha dezenas de irmãos e seu pai vendia peixes e também matava porcos para sustentar sua família. Ela, solteirona, morava com os pais na região entre os bairros de Petrópolis e Praia do Meio. Família pobre, mas trabalhadora como muitas outras que habitavam os arredores da referida praia. No citado livro de Nilo, seu apelido dá título a um conto e mostra-nos uma quadra cantada popularmente pelos mais jovens dos anos 70/90, os quais também a apelidava de - ‘Corre Campo’ e ‘Errepê’, referências à cobra que não para de correr e ao antigo fusquinha da polícia, que batia o mundo todo em Natal:

“Rocas Quintas, Rocas Quintas,

Todo dia pega trinta,

Trinta homens todo dia,

“É a conta de Maria...”.

             Em 1999, participando do concurso literário do então Quarto centenário da Cidade do Natal, promovido pela secretária especial para as festividades, apresentei meu projeto, que tratava de muitos tipos populares que conheci nas ruas das Rocas, das Quintas, passando meu Alecrim, onde nasci e vivi grande parte de minha vida. O referido projeto foi aprovado e eu ainda exigi que o livro fosse numerado de 01 a 400, em homenagem a minha cidade. E lá, pela segunda vez, a prostituta andante apelida de Rocas Quintas está figurando numa crônica, nas páginas 146/148. Sem sua fotografia, tão programada com o amigo Canindé Soares, pois quando chegara em sua moto, ela já havia debandado da Cidade Alta para as Quintas, atrás de seus possíveis pretendentes sexuais... Quando lancei o meu citado livro a procurei por semanas e não mais a encontrei pelas ruas. Teria partido sem destino em busca de novos amores em outras paragens? Ou como diz o povo: virou finada na terra dos pés juntos?

Quarto de um cabaré - Foto: José Alves (Trabalho universitário 2008)

            Seu apelido foi parar em outro livro meu, Dicionário Papa – Jerimum, Apelidos & Afins, editora Argos, 2001. Conheci dois dos maiores memorialistas de tipos populares de Natal, Veríssimo de Melo, (1921-1996) e Augusto Severo Neto, (1922-1991). O saudoso mestre e amigo ‘Vivi’, em inúmeras oportunidades em que estivemos em conversas e prosas, nunca me falara de uma outra Rocas Quintas que fosse de seu conhecimento. Muito menos o Severo Neto, que em 1980, publicando o seu famoso livro, ‘de Líricos e de Loucos’, deixara de fora a conhecida Maria Edite, a nossa conhecidíssima Rocas Quintas. O memorialista Severo, até lembrou-se de outras famosas de seu tempo em Natal, como “Severina; Simoa; Júlia Águia e Bernadete”.

             Portanto, minhas senhoras e meus senhores, pois de agora em diante fiquem certo que essa é a verdadeira história da nossa Rocas Quintas. Se alguém teima em dizer que existiu outra, de região diferente, que foi uma professora seridoense que ficou louca e viveu em Natal, mostre-nos fontes e testemunhos sérios. Agora lembrei que, certa feita, estando ouvindo um senhor de idade lá na feira do meu Alecrim narrando uma história verídica, um menino o interrompeu, dando também a sua versão. O velho o deixando falar sozinho só teve como alternativa exclamar para os ouvintes de sua história: “Pode contar aí menino o que você não viu...”. 

Beco da Quarentena, no bairro boêmio da Ribeira, em Natal, em décadas passadas

              A nossa apelidada em questão, nunca foi lenda, foi genuinamente história de poucas décadas passadas. A mesma sofreu e provou do pão que o diabo até amassou. Não teve vida ‘fácil’ como fichava o então delegado Mário Paulino, as suas pobres raparigas metidas em confusões...

               Como diz o sábio matuto, quem conta a história de que matou a cobra, tem que mostrar o pau. Só acredito em história, quando esta vem com comprovação de fatos reais ou depoimentos memorialísticos. Sou devoto de São Tomé e vivo escaldado com conversas fiadas! O resto, vocês já estão cansados de ler nas criações de Esopo e La Fontaine. São outros quinhentos e conversa pra boi dormir... Que meus netos não venham ler sobre outras ‘Rocas Quintas’ e outras, ‘Maria Batalhão’, que eu conheci de perto nessa terra abençoada do respeitado Câmara Cascudo!

Arpege - outrora, um dos mais frequentados cabaré da Ribeira

              E aqui termino por hoje, lembrando-os que muita conversa sem prumo, fechou de vez o afamado ‘Café Cova da Onça’, da velha Ribeira do Beco da Quarentena. Aliás, este espaço antigo não foi habitado pela nossa vivente, a verdadeira e única ‘Rocas Quintas’, que agora está no céu, muito bem protegida por Santa Madalena!

             Morada São Saruê, Nísia Floresta, 27/09/2020.

Memórias de vida própria

João Maria de Lima. É mipibuense, professor, Conselheiro Estadual de Educação e atual diretor da Escola da Assembleia.

As almas são iguais. É o que torna possível a comunicação. A palavra “doce” só tem sentido para alguém que já comeu doce. Não é possível comunicar o gosto e o cheiro do doce a quem nunca experimentou um. De igual forma, as memórias escritas de alguém fazem ressoar em quem as lê. Eu sinto bem isso quando leio Rubem Alves, por exemplo.

É de Adélia Prado uma das minhas frases favoritas: “Aquilo que a memória ama fica eterno”. E aqui, quando a leio, só me vêm à mente as “memórias com vida própria”; sim, porque existem “memórias sem vida própria”.  Estas são as que só resgatamos quando precisamos. Estão a cada dia mais em desuso com os recursos dos smarthphones, afinal guardamos números de CPF, de telefones, contatos, endereços e até organizamos uma agenda com esse penduricalho tecnológico, cuja função cada vez menos é telefonar.

A “memória” da frase de Adélia soa, para mim, com vida própria. “Memórias com vida própria” moram em nós, mas não nos pertencem. Basta andar por uma rua, ver uma casa, um livro, ouvir uma música. Pronto! Elas surgem sem pedir licença.

Vô Antonio e Vó Luzia

Quando retorno a São José do Mipibu, minha terra natal, as memórias retornam. É assim quando vejo a Casa da Saudade, onde viveram, durante minha infância e juventude, meus avós paternos. Lá, eles recebiam filhos e netos. Meu avô me contava estórias, sim, não eram histórias. Estas acontecem no tempo em que aconteceram e não acontecem mais. Aquelas moram no tempo em que não aconteceram para acontecerem para sempre.

Pois bem, vejo meu avó Antônio me contando estórias todas as vezes em que vou à Casa da Saudade. E vou lá sempre. Impossível entrar no quarto dele e de vô Luísa e não me lembrar dos dois.  E não é só pelo retrato pendurado na sala. É porque os sinto comigo quando ali entro. Vovô morreu em casa, em 1995. Vovó, na mesma cama, 10 anos depois. Até hoje me lembro do momento em que, morrendo, ela ainda conseguiu me abençoar, enquanto eu acariciava sua mãozinha. Esta casa é a prova de que a saudade não conhece o tempo. Bachelard dizia que “A lembrança pura não tem data. Tem uma estação”, mas, recentemente, em 2019, no dia dos avôs – na tradição Católica, comemora-se no dia de Sant’Ana, 26 de julho – escrevi um poema com saudade deles e da casa, a qual temos alegria em preservar. É um resumo do que vivi e relembro quando lá retorno:

CASA DA SAUDADE

Esta é a Casa da Saudade

Onde vive a alma de Antônio e Luísa

Minhas lembranças de criança e adolescente

Por aqui ainda estão

Quando seus filhos e netos se reúnem

Linda festa, sobra emoção

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Antônio era mais velho

Mais cedo nos deixou

Não vivia sem um roçado

Onde plantava com amor

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Luísa, minha pequena,

minha linda, minha flor

Não havia um neto que chegasse

Que ela não recebesse com amor

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Oh, meus avós, quanta saudade

De receber o seu carinho,

me chamando de Joãozinho

Aqui chegar era a minha felicidade

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Os dois a me abençoar

Contando histórias

Café no pires, bolachinha

Bolinho de feijão

Só quem tem avó

Sabe essa emoção

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O rádio, de tardezinha,

Minha avó logo ligava

Vô Antônio na calçada

Entoando a embolada

O café numa “xicrinha”

Comendo uma bolachinha

Enquanto a sopa não chegava

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O quintal, que hoje nos acolhe,

Era nosso parque de diversão

Pé de ciriguela, pitomba

Água de coqueiro anão

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Hoje estamos aqui entoando felicidade

Relembrando a memória deles

Na casa da saudade

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Sua bênção, minha vó,

Vô Antônio também

Sei que nesta hora me abençoam

E eu, feliz, digo amém

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Fica aqui o meu respeito

Carinho para eternidade

O amor me enche o peito

Na Casa da Saudade

Ô saudade da gota ( IV)

Rosemilton Silva - É jornalista

Apois num é que hoje comecei a “márrescordá” dos jogos de futebol com os “tivucos” de Jurandir e Deusdedith, das batidas de escanteio de Juvená Pé de Copa; dos peixinhos de Reco, dos dribles de Raimundo Preto, dos vôos de Zezim Cacheado e ainda da torcida de Pitico com seus tiques que afastavam todos ao redor dele.

Puxando pela memória sem muito esforço, dá pra ver Pedro de Tico com aquele pano de saco de estopa no ombro, “assugando” as calças pra vender um polí saído daquela bandeja de alumínio com um cabo para facilitar a retirada ou uma cerveja bem geladinha saída da geladeira a gás. Do sacolejar dos copos na bacia com água depois de servidos para serem colocados no “atajé” e atender o freguês seguinte.

Remoendo o pensamento vem uma saudade danada do puxa-puxa feito por Prima, do algodão doce de Lourival, do quebra queixo vendido por Zé Domingos, da tábua cheinha de pirulito vendido por Zé Nadir, do polí de cajá de dona Noca, do cachorro quente acompanhado do latido e do cuscuz vendidos por Juvenal Pé de Copa que também era flandeleiro e excelente consertador de panelas, tachos, bules, papeiros, caçarolas e frigideiras.

Atracado no porto da saudade ouço a voz de João Bosco desafiando o portinhol em Malagueña ou La Barca, Jandir Cruz soltando a voz em Sonhar Contigo, Geraldo Moura abrindo o gogó em Rosa, Dinarte temperando a garganta em Maria Helena, Fogão imitando um piston em Royal Cinema... Os violões de Antonio Aleixo, Zé Domingos, João de Luiz Passo... As sanfonas de Everaldo, Zé Guilherme, Dé de Moisés e Zé Galdino... O sax de Deusdedith, o clarinete de Hildebrando, a tuba de Manoel Pataca... Dá saudade até do chulé de “mestre” Oscar.

Rastejando nas lembranças do Bar do Ponto, vem o cheiro do café de Zé Garcia para animar as discussões debaixo daqueles caramanchões enfeitados com suas flores vermelhas, do som da “boca de ferro” em cima do Bar do Ponto da Difusora Irapuru com Nivaldo Mouco batendo na testa quando errava alguma coisa. Das vozes maravilhosas de José Maria Madrid – que andou até pelo Rio de Janeiro na Rádio Tupi -, de Jandir Cruz e de João Leite. Do rádio de doutor Jonas e do relógio preciso de seo Horácio.

Encafifado com o lacrimejar dos velhos e bons tempos, dá pra ver os cangapés nas águas claras depois medir a subida das águas no rio, da pescaria com anzol feito de alfinete e amarrado em linha urso como diversão para melhorar o almoço, de soltar coruja feita de papel crepon e armação de palito de folha de coqueiro. Apois me dê licença, seo Minino, que eu vou ali na bodega de Pulucena na rua do Pecevejo antes de chegar na casa de Reginaldo Andrade pra me encontrar com Toinho Gabriel (Fogão), Renato, Joca Lindo, Deusdedith e Dinarte que hoje é dia de ensaio de “Os Impossíveis”.

Uma resposta para “Crônicas do domingo Rocas Quintas: a única e verdadeira que Natal conheceu!”

  1. Angela disse:

    Muito bom recordar acontecimentos felizes da infância. Todo mundo sabia fazer e empinar pipa de crepom e palitos de coqueiro. Realmente memória tem vida como diz no artigo.
    De Raças Quintas sabia da versão professora.