Crônicas do domingo
Santas cozinheiras anotadas na minha agenda Gutenberg Costa – Pedagogo, Bacharel em Direito, Escritor e Folclorista Essas mulheres são exímias mestras de cozinhas e quando partem, geralmente, não deixam substitutas ou herdeiras para cuidar das panelas e seus fogões.
Santas cozinheiras anotadas na minha agenda
Gutenberg Costa – Pedagogo, Bacharel em Direito, Escritor e Folclorista
Essas mulheres são exímias mestras de cozinhas e quando partem, geralmente, não deixam substitutas ou herdeiras para cuidar das panelas e seus fogões. Adeus, tia Chica! Dizem que cozinhar é uma difícil arte recheada de segredos. E quantos cadernos velhos de antigas receitas se perderam no tempo ou se acabaram nas traças? Muitas delas foram comparadas aos nomes das famosas ‘Dona Benta’; ‘Ofélia’; ‘Palmeirinha’, entre outras de meu tempo. Não tem como, vou ter que lembrar algumas artes de minha saudosa genitora Dona Maria Estela, a qual fazia sozinha a nossa refeição, não aceitando ajudantes e não admitindo os seus cinco filhos homens perto de seu fogão. Taí a minha explícita desculpa atenuante para dizer-lhes que não sei fritar um ovo. Ficava de longe observando a sua paciência em preparar até chegar o ponto certo de desligar as panelas. Café de pó coado em pano e todos os temperos pisados em um pequeno pilão. Nem preciso comentar-lhes o cheiro de seus preparos nas vizinhanças. Ela dizia ter aprendido com a dona ‘Precisão’, quando a sogra a viu chegar com bonecas aos quatorze anos, fugida lá de Pendências/RN, para o bairro das Quintas em Natal. Não é muito fácil aprender na marra, mas algumas pessoas conseguem assim mesmo. Dizem que tempero bom é quando se está com fome e o aperreio ensina...
O que me leva a voltar a um restaurante ou qualquer ambiente de refeições é o tempero da cozinheira. Sempre as deixo desconcertadas com minha resposta se a comida delas está deliciosa ou não: ‘essa aqui nem cachorro come’... E quando as vejo preocupadas com minha observação eu emendo imediatamente: ‘é porque não sobra!’. Às vezes, também brinco dizendo: ‘só tem um defeito no dito prato’. E ouço a angustiante indagação: “Qual defeito, pelo amor de Deus?”. Rindo, logo emendo: ‘Está pouco... Eu queria era mais’. Quem me conhece sabe que não olho o luxo no ambiente, e sim a boa gastronomia e limpeza do espaço. Cozinha tradicional é limpa, geralmente, está em pequenos locais. Elas trabalham como se tivessem em suas casas servindo aos filhos. Mulheres simples e honestas. Vi muitas dizerem que o meu desejo não podia ser atendido: ‘Por que, Dona Maria?’: “a menina que me ajuda colocou sem querer a colher suja na panela e azedou o picado!”. Elas não vendem o que seus familiares não possam comer. Muitas vezes, ficamos esperando o peixe ser frito ou o pirão escaldado ser feito na hora. Nada congelado e nem usando o tal do micro-ondas. Você entra facilmente na cozinha e até prova do que está sendo feito. Algumas vêm conversar em nossa mesa e até se tornam confidentes e amigas.
Citei os nomes de muitas cozinheiras de restaurantes e pontos comerciais aqui de Natal, entre 1975 e 2020, no meu livro mais recente, lançado o ano passado e já esgotado – Breviário Etílico, Gastronômico e Sentimental da Cidade do Natal. Nomes como os de donas Deise e Fátima, do Mercado da Avenida 6, no bairro querido do Alecrim. Ali as referidas servem os melhores carneiros torrados com feijão verde que já comi na minha vida. Nessa miserável pandemia eu estou é morrendo de saudade dos peixes fritos de donas ‘Bibi’ e ‘Deja’ lá do Mercado de Petrópolis. Por falar nesse bairro, quem teve a sorte de provar da comida da finada dona ‘Helena’ da Cabeça de Bode? Que saudades!
Vou abrir exceção e lembrar com justiça o nome de dois bons cozinheiros. Um era o saudoso ‘Nazareno Barbosa’, nosso ‘Madame Satã’, o qual preparava uma moqueca de peixe para jurado especializado em gastronomia nenhum botar defeito. Nazareno foi dono e cozinheiro de vários bares em Natal e já foi citado com justiça em dois livros meus. O vivo é o velho ‘Pernambuco’ lá das Rocas, no Canto do Mangue. Todo mundo volta se um dia olhar e provar do peixe frito com tapioca, feitos na hora pelo próprio em seu fogão. Ele apronta e vem deixar na mesa e, de vez em quando, puxa uma boa prosa.
A feira do Alecrim, na Avenida 1, que foi meu palco de vivências de criança e adolescente me deu até uma comadre. Dona ‘Maria’ trabalhava da sexta-feira para o sábado na chamada feirinha do picado. Morreu com o sonho de me ter como padrinho de sua filha caçula. O batizado não foi realizado, mas a afilhada me tomou a bênção até adulta. A tal dona Maria me ensinou o seu ‘pulo do gato’ para fazer um bom picado: “escolha uma carne de um carneiro novo, pois animal velho deixará um cheiro ruim. Lave os miúdos com limão e vinagre. Dê uma primeira fervura e coloque todos os temperos, principalmente alho e pimenta do reino para a segunda cozida e deixe o cheiro verde para colocar na hora no prato. O aliado do picado é a farinha fina branca”. Digo sempre que tempero bom é de cozinheira pobre, que não mistura muito ingredientes diversos. Peixe frito é com farinha e o cozido é com pirão. Carneiro torrado ou bode é com feijão verde e cuscuz. Não adianta me enrolar na conversa. Muita farofa num prato é sinal de pouca carne! Matuto não se engana fácil...
Confesso que sou muito chato e já fui embora de um restaurante que queria me servir peixe com feijão preto. Ou a feijoada é completa ou o peixe cozido com pirão. A culinária nordestina é simples e deliciosa, só precisa de uma mão de fadas na cozinha. Quando elas são despedidas ou partem para o céu, os pontos fecham. Não adianta tapeação, pois a freguesia desconfia logo de novas profissionais com suas estranhas receitas. A farofa não é a mesma. O Caldo não engrossa. A galinha cabidela nunca é a do passado. E por aí vai...
Sempre que pisava meus pés em Pendências, logo me socorria da galinha caipira de ‘Raimunda Preta’, do Mercado. Alguns anos passados, chegando a Macau/RN na hora do almoço comprei uma briga com meu primo radialista ‘Neto Borracha’ e fui direto ao Mercado local, me saciar do carneiro torrado no ponto de dona Tércia. Assim, fiz em Alto do Rodrigues, puxando meu primo ‘Neto de Dagmar’ para tomar café com cuscuz e panelada no ponto de dona Dalva. Meus médicos e amigos plantonistas ‘Rafael Negreiros’ e ‘Marcos Oliveira’ sabem de minhas estripulias gastronômicas. Muito melhor do que enlatados, massas e refrigerantes não senhores da medicina?
Vou deixar vocês com água na boca e parar de falar na ótima culinária sertaneja potiguar. A história da alimentação está na minha biblioteca e é de autoria do nosso conterrâneo ‘Câmara Cascudo’, o qual foi à África, escreveu e destrinchou o que a gente nem imagina. Já consultou Cascudo? Eu o faço todos os dias para errar menos na vida. Sentou-se em tamborete e foi servido de um pirão escaldado de cozido de boi? Já dizia o ‘Barão de Itararé’: “Só se leva dessa vida o que viveu”.
O resto é resto e ficará nas lembranças dos que venham a fechar as porteiras atrás de nós em nossa partida! Sabemos que vão dizer: Deus o tenha no Paraíso! E será que na terra vocês viveram bem? Comeram a comida dessas santas? Foram as festas populares? Viajaram para lugares simples? Leram bons livros e tiveram boas amizades?
Caso contrário, sinto muito em dizer-lhes meus leitores e leitoras, vocês viveram por essas bandas em um grande inferno! Inté a próxima!
Nísia Floresta/RN.
Quebrar da barra
Rosemilton Silva – É jornalista
Quando o sol delineia a serra descobrindo seus contornos e anunciando o começo do dia ainda meio preguiçoso, mas já com seus sons ecoando por ruas e becos da pequena cidade, e aos poucos vai ouvindo o bater de panelas e a queima da lenha de primeira ou do carvão comprado a Joaquim Domingos, ao mesmo tempo o barulho dos copos vai apontado para o rumo do caneco pegando a água limpa e friazinha no fundo do pote, para o café de sabor inconfundível depois de torrado na rapadura e pilado no pilão.
E lá vem Juvená Pé de Copa com seu carrinho anunciando a todo pulmão o melhor cuscuz do mundo e ninguém duvida. Que o digam os hóspedes do hotel de Zé Dobio, enquanto Borrego vai deixando no prego das portas a sacola de pão ainda quente. Carrapeta já tem tirado o leite lá em Clodoval e desce fazendo entrega aos fregueses cuja conta, será acertada no sábado durante a feira, e que vai dar a manteiga a partir da fervura do leite quando a espuma sobe e ao esfriar a nata faz aquela camada espessa pedindo para ser guardada até que seja batida para a produzir a manteiga caseira.
Maria Madalena nos mostra a tapioca que vai ser coberta com o leite de coco extraído no raspador que se acomoda no tamborete onde ela senta em cima para raspar até ficar só a quenga. Ah, mas não há nada igual aos cocorotes feitos por Mãe Quininha. É coisa de lamber os beiços.
Em becos e ruas, seo Meireles tange uma conversa animada ou brava com suas burras e seus barris cheios de água barrenta do açude Santa Rita enquanto Badaneco deixa o mercado onde encheu o seu galão de água docinha como mel acumulada na chuva generosa deste ano e que, além de proporcionar um belo banho de bica, deu pra encher a cisterna.
O cheiro de um bolo de milho, de macaxeira ou pé de moleque acorda os meninos que precisam se arrumar pra escola. Mas bom mesmo é o bolo da moça feito por dona Chiu ou a solda preta de Everaldo que a gente compra na bodega da mãe dele, dona Maria do Carmo.
De um poço que ficou da enchente do rio este ano, vem alguém com uma “enfieira” de piaba que vai dar um melhor sabor a batata de rio que pode ser comida machucada com leite a exemplo do jerimun, a tapioca ou o cuscuz do milho dormido e moído logo cedo. A macaxeira cozinhada ou assada na manteiga
Do matadouro onde Chagas Lourenço matou um boi, Zé Romão surge com um quarto do bicho escanchado nas costas para o açougue de Zé Vicente, Hominho ou Chico de Juca ou dos três.
Peixe nem sempre tem, mas há quem traga uns pescados da capital porque traíra, curimatã, piau, cará ou cascudo e, aqui e acolá quando o cabra consegue, um mussu que se deixou pegar pela mão de um cabra altamente adestrado para esta função porque não é coisa pra qualquer um.
Um mamão do canto do muro, uma goiaba de fim de rama da goiabeira do quintal, uma melancia de um pé que teima em se manter no leito do rio, mas que já está morrendo. O limão também vem do quintal onde todo dia é aguado. A banana e a laranja são trazidas do Brejo da Paraíba. Frutas são produtos raros, mas há sempre na feira e vem um pouco "de vez" pronta para amadurecer ao longo da semana. A banana é que vem bem verde e precisa de carboreto para amadurecer encoberta pela folha da planta.
Bom, me dê uma licencinha que eu vou ali buscar em Maria Madalena um choriço para o lanche ou a sobremesa do almoço.
ROSEMILTON. eu amo cozinhar, amo chouriço e 2 dedos de prosa.
Compartilho do amor pela boa mesa, simplicidade, resgate das raízes, bom papo…enfim: quer conhecer um lugar: visite suas feiras e seus restaurantes tradicionais, converse com o seu povo! Muito bom ler está crônica!
Valiosíssimo texto, e quando se coloca como tempero “História da Alimentação no Brasil”, o prato fica mais saboroso. Sempre recomendo esse livro. Quando aluno da UFRN, na disciplina de Cultura Brasileira, o professor e poeta Sanderson Negreiros trouxe uma caixa de livros para que cada aluno escolhesse uma obra,dentre tema diversos. Eu havia faltado nesse dia, portanto, quando fui encaminhado para a caixa, dei-me com “História da Alimentação no Brasil”, de nada menos que Luís da Câmara Cascudo, dentre outras obras de outros autores, mas todas enormes. “História da Alimentação…” é um livro grosso, assusta quem não gosta de ler. Peguei, sem problemas, habituado a ler muito desde pré-adolescente…. não estranhei. Alguns amigos até riram, como dissessem “quem mandou faltar? Pois só sobraram esses!”. Foi um dos maiores presentes da minha vida. Maravilhoso. Já o li três vezes. Confesso que não entendo como alguém deixa de ler um livro pelo volume… ainda mais uma obra tão rica e deliciosa de se ler. Parabéns, Gutemberg, por por permitir ao leitor as deliciosas iguarias contidas em suas obras. E viva a Cultura Popular!
Sou fã das crônicas do grande escritor Gutemberg Costa, escreve sobre o cotidiano, coisas simples do dia a dia, e essa sobre nossa gastronomia, além de imaginarmos o sabor, imaginamos o cheiro e até podemos vê os ambientes…muito bom, me fez lembrar das comidas que minha mãe fazia,(saudosa Dona Jove) e também dos tira-gostos que ela preparava lá no Recanto do Seridó, no Conjunto Candelária…
Bela crônica, Gutemberg! Nessa homenagem entram também todas as nossas Mães! Como eu gostaria de ter um caderninho com todas as receitas simples, saborosas e cheias de amor, que a minha mãe “Dona Lourdes” fazia com maestria! A sala de estar da nossa casa, sempre foi – invariavelmente – a sala onde fazíamos as refeições. A nossa “sala de estar” servia só para enfeitar a casa. Esse estilo era uma das marcas registradas de Mamãe : levava as pessoas que nos visitavam logo para um cafezinho, um lanche que fosse, e todos se maravilhavam com as iguarias que ela servia, feitas por ela -quando tinha saúde. Sem querer, você homenageou também a minha Mãe, Gutemberg ! Obrigada! São muito belas as crônicas que você faz !