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dezembro 10, 2023

O ENTERRO DE FEFA

Ana Cláudia Trigueiro – Escritora e Psicóloga Hoje passei de carro por uma certa igreja.

Ana Cláudia Trigueiro - Escritora e Psicóloga

Hoje passei de carro por uma certa igreja. Lembrei de uma cena que testemunhei em um enterro no Cemitério Morada da Paz. A cena foi real, embora pareça ficção.

Recordo do quanto fiquei chocada e pesarosa. Terminei criando a personagem "Dona Pequenina" e escrevendo um conto humorístico, tentando relatar por entrelinhas, como as religiões podem ser cruéis e o quanto os ditos "gagás" podem ser muito mais sensatos e corajosos do que jamais seremos.

O enterro aconteceu há muitos anos, os nomes foram trocados para preservar identidades, portanto, ninguém reclamará por minha indiscrição. De qualquer modo é uma história digna de ser contada...

O conto encontra-se no meu livro "Bruma, a última estrela", disponível com frete grátis (para toda Natal) por apenas R$30,00.

O ENTERRO DE FEFA

Fefa morreu. E agora?

Como contar a desgraça à Pequenina, irmã mais velha e protetora da falecida desde que as duas vieram de Acari para morar com os tios. Pequenina apoiou Fefa por toda a vida: matriculou-a no curso de corte e costura, arranjou-lhe emprego na Guararapes como operadora de máquina overloque, ajudou na criação dos sobrinhos e ainda botou para correr o sem-vergonha do Tarcísio, aquele mulherengo incorrigível, que a caçula chamou de marido por 16 anos.

A cada quinze dias Pequenina ia visitar Fefa no bairro Pajuçara. Lá, as irmãs rememoravam suas dores e alegrias, enquanto tomavam licor de jenipapo, malva-rosa ou acerola, que continha vitamina C.

As duas eram confidentes. Uma conhecia tudo da vida da outra: Fefa sabia, por exemplo, que Roberto Filho não era descendente biológico de Roberto pai. Que o grande amor da vida de Pequenina fora José Ireno, o vizinho farmacêutico que tratou as doenças dos quatro filhos dela, sem nunca ter cobrado um tostão pelos remédios.

Pequenina sabia que o viúvo João Quirino acochambrou Fefa por vinte anos até ele morrer de infarto em 1997. Faziam amor de modo clandestino por causa da religião dos filhos: estes acreditavam que casais só podiam dormir juntos após o matrimônio. Acontece que o traste do Tarcísio nunca deu o divórcio, motivo pelo qual Fefa e João Quirino tiveram de fingir que eram somente amigos.

Fefa não sobreviveu ao AVC que a acometeu em casa, enquanto preparava um bolo da moça para os netos. Já chegou sem vida ao Hospital Walfredo Gurgel. Dona Pequenina sentiu muito a perda da mais nova, como era de se esperar, mas, criada entre o mandacaru e o xique-xique, sabia o que era espinho na vida. Sua reação foi mais uma demonstração da costumeira força e praticidade que a acompanhou por toda a existência: “Tomara que o enterro não entre pela noite, porque hoje é o último capítulo da novela”.

Fefa jazia serena dentro do caixão. Em volta choravam discretamente filhos, netos, sobrinhos, amigos, irmãos da igreja e até mesmo um pastor empaletozado, que parecia prestes a iniciar uma fala importante.

Pequenina foi uma das últimas a chegar. Teve dificuldades para se aprontar porque uma hora antes e em segredo, entornara meia garrafa do licor de jenipapo, o preferido da irmã caçula. Beber o líquido doce e ardente que, por anos, acompanhou o encontro quinzenal das duas foi sua última homenagem.

Foto Ilustrativa

No finalzinho da tarde, pouco antes de o caixão baixar à sepultura, o pastor iniciou sua inspirada pregação. Pequenina, que já estava meio sonolenta, levou um susto quando o impávido, com o dedo em riste, quase gritou a pergunta clássica dos que planejam intimidar incautos da fé:

- Algum de vocês sabe aonde vai parar, se não aceitar Jesus como o salvador da sua vida?

Silêncio total. Os crentes oravam quietos pela conversão dos parentes de Fefa, os católicos da família torciam a cara para o pastor, os agnósticos conferiam a hora e os ateus xingavam-no em pensamento.

- Vou responder! Vou responder, porque desejo que todos aqui tenham o mesmo destino de dona Josefa Pires, que já está a essas horas desfrutando do sono dos justos.

Pequenina começou a balançar a cabeça de um lado para o outro, e o movimento não passou despercebido aos filhos. O ministro continuou sua admoestação.

- Se você, meu irmão, se você, minha irmã, não se converter dos seus caminhos maus vai parar no inferno! Onde só há dor e ranger de dentes!

Roberto Filho cochichou ao ouvido de Marilda, que ela levasse dona Pequenina para tomar uma aguinha. Temia que a mãe, diagnosticada recentemente com o mal de Alzheimer, ficasse irritada com o tom de voz do pastor. Mas não houve tempo. Ao primeiro sussurrar de Marilda, Pequenina gritou:

- Isso é um louco!

O pastor estancou surpreso ante o protesto da idosa. Todos olhavam para Pequenina, alguns tentando segurar o riso, outros torcendo para o circo pegar fogo. O sacerdote levantou uma sobrancelha, mas pensou melhor e resolveu ignorá-la:

- Dona Josefa teve uma vida muito sofrida, mas permaneceu fiel aos princípios bíblicos da pureza, mantendo-se leal ao esposo, mesmo ele tendo abandonado a família.

Pequenina entronchou a boca e respondeu ao pastor:

- Sai daí, seu maluco!

Marilda, que estava logo atrás, começou a cochichar ao ouvido da mãe: - Fique quieta, pelo amor de Deus!

Como sempre, a velhinha não obedeceu:

- Saia já daí, seu louco! Deixe de falar besteiras! Bem se vê que você não conheceu Fefinha!

O pastor desistiu. Melhor não dar munição àquela velha. Ela poderia revelar segredos de família que não favoreceriam a conversão dos indecisos. O enterro acabou mais rápido do que o planejado, o que foi um alívio para quase todos, tendo em vista que a novela era muito popular.

No domingo seguinte, o primogênito de Fefa tentou se desculpar com o líder da comunidade religiosa. Alegou que a tia sempre fora avexada. Não tinha papas na língua e, depois dos setenta, piorara do humor. O pastor compreendeu tudo, menos o fato de a velhinha não aceitar vir para a igreja - as idosas costumavam ser generosas com os dízimos - Essa foi a condenação de dona Pequenina. O restante se perdoava.

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