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outubro 22, 2023

Conversa de livraria

NILO Emerenciano – Arquiteto e escritor Entreouvido dia desses em uma livraria de shopping (não vou dizer qual para não fazer merchandising desse povo) numa dessas tardes em que eu fazia trottoir para esperar minhas netas.

NILO Emerenciano - Arquiteto e escritor

Entreouvido dia desses em uma livraria de shopping (não vou dizer qual para não fazer merchandising desse povo) numa dessas tardes em que eu fazia trottoir para esperar minhas netas. Os dois homens, já senhores de certa idade, conversavam sentados por trás de onde eu estava folheando um livro e assim não pude deixar de ouvir.

Um deles, de jeito calmo de falar, reclamava da idade e de como não sabia lidar com as coisas novas do dia a dia.

- Me sinto um dinossauro, ou pior, um protozoário. Me chamavam tio e eu já detestava, agora chamam vovô. Só querem falar comigo sobre remédios, taxas de glicose e pessoas que morreram". - Lembra fulano? Pois é, se foi há um mês...”

- E você, o que não gosta? O outro, cabelos brancos, quase inteiramente careca, barba rala e cara de poucos amigos, respondeu falando baixo.

- Não gosto que me roubem. Estou velho, mas não sou besta. Fui tomar um café com leite lá em cima e tive a lucidez de perguntar o preço. Sabe quanto? O pequeno, treze reais e cinquenta. O médio, quinze e trinta. E o grande custa a baba de dezessete e trinta suados reaizinhos. Vão roubar outro! Por esse preço compro um pacote de café e uma caixa de leite, recebo troco e me encho de cafeína o mês inteiro até entupigaitar! 

-É verdade, é verdade, riu o calminho. Estou aqui porque é o jeito, é seguro, climatizado, passam linhas de ônibus para a cidade inteira bem aí na frente.

- Você usa ônibus? perguntou o de cara fechada. É um herói. Dia desses inventei de usar o meu cartão de idoso e sair sem preocupações com o trânsito. Sou de quando só havia linha Rocas-Quintas acabando ali no matadouro. Agora é na base da numeração. Perguntei na parada a uma senhora qual ônibus eu devia pegar. Ela respondeu, gentil, o 31 ou o 62.

- Minha senhora, não estou querendo jogar no bicho, mas ir até o centro da cidade.

Acho que ela não gostou, pois virou a cara e se afastou. Resolvi pegar qualquer um, mas qual, o ônibus que parou tinha três portas! E aí, qual eu deveria procurar? Fazer salamê minguê? Bati na do motorista, mostrei a carteira de idoso e ele deixou que eu subisse. Tranquilo, confortável, nem de longe parecia as lotações da empresa Barros. Até esqueci de perguntar para que as três portas.

Vim pensando em largar o carro e o estresse do trânsito até que nos aproximamos do meu ponto. Procurei a cordinha para pedir parada. Pois veja, não tinha cordinha! O dinossauro aqui, envergonhado, atordoado, tocou o ombro de uma moça procurando ser gentil.

- Jovem, como faço para pedir parada? Ela riu, superior, e apontou com o beiço para um botão embutido na barra de metal:

Yellow handrail on the bus with the stop button

- É só apertar um desses, vovô, disse. Tentei fazer graça - Sou de doze, soltei, antes de descer. E ainda conclui da porta – No meu tempo era uma cordinha.

Os homens riram, se divertindo com as próprias desventuras.

- Meu neto, (era o enfezadinho falando) agora só fala em Kardec, como se eu não soubesse quem foi. E tome vida em Marte, lei de causa e efeito, reencarnação. Acho que ele insinua que não demoro mais muito tempo por aqui.

- E você, meu amigo, acredita nisso de espíritos?

- Não sei. Na minha juventude andei vendo algumas coisas. Sei que há coisas estranhas, mas não é porque envelheci que vou achar que nasço outra vez. Nem gostaria. Já pensou, passar por tudo novamente? Escola, educação física e tudo mais. Servir ao exército, fazer ordem unida então, nem pensar!

Riram juntos.

- E fazer vestibular, escolher carreira. Reaprender álgebra linear, física e aquelas fórmulas todas, leis de Newton e o escambau. Nunca me serviram pra nada na vida.

- Geometria descritiva, o outro gritou, entusiasmado.

O careca parece que era da área de humanas, pois puxou a brincadeira para o português.

- Eu juro de pés juntos que não quero jamais aprender novamente a conjugar os verbos. Gerúndio, subjuntivo, infinitivo pessoal, defectivos, vou passar por isso de novo?

O careca gritou, empolgado:

- Rizotônicos e arrizotônicos! Fala sério, nunca aprendi nada disso. E riu gostosamente. Vamos combinar, pra que porra serve saber o que é um pretérito mais-que-perfeito do indicativo?  Próclise, mesóclise e ênclise!

A essa altura eles choravam de rir. Havia virado um jogo.

- Aprender a andar de bicicleta? - Fazer a primeira comunhão? Ler Machado de Assis?

- E a primeira namoradinha, então, todos aqueles arrodeios, a mão boba, a ereção envergonhada.

- A primeira transa, gritou, esquecendo onde estava, o carequinha.

- Não sei você, mas eu fingi experiência enquanto procurava desesperadamente o local certo onde colocar o pinto. Na próxima vida acho que as coisas vão ser mais fáceis.

- Tomara, disse o mais calmo. A minha primeira vez foi horrível, com uma profissional. A calçola da criatura tinha uns cinquenta botões, parecia uma batina. E o soutien uma catinga danada de borracha estragada. Quase desistia daquilo ali mesmo.

Eles se levantaram, enxugaram os olhos com lenços (pois é, lenços), e se despediram amigavelmente. Ao sair o outro parou e comentou:

- Pensando bem, acho que quero nascer de novo, sim. Vai ser divertido. Sofrido, mas divertido.

Me preparei para sair também, pensativo. Mas concordo. Vai ser, no mínimo, divertido e, portanto, vai valer a pena.

Uma resposta para “Conversa de livraria”

  1. Eurídice Carvalho Armán Lima disse:

    Muito divertida a crônica. Nós, sessentões, temos vivido experiências bem interessantes. Para citar uma gíria da nossa época, é, no mínimo, um “desbunde” por dia.