Jornalismo com ética e coragem para mostrar a verdade.

abril 21, 2024

Carta para o Gargalheiras

Jeane Araújo – Professora e Membro na empresa da Academia Cearamirinense de Letras e Artes – ACLA Em 2015 eu escrevi uma carta para o Gargalheiras.

Jeane Araújo - Professora e Membro na empresa da Academia Cearamirinense de Letras e Artes – ACLA

Em 2015 eu escrevi uma carta para o Gargalheiras. Chorei ao escrevê-la. Fui visitá-lo e ao ver seu solo rachado e os peixes agonizando em seu leito, chorei. Ali estava o gigante pedindo socorro silenciosamente. A sensação de impotência que me tomou me fez redigi-la , era uma carta- oração, para ele e para Deus. Pedi que não o deixasse morrer, que não o deixasse naquele abandono porque éramos um só. O Gargalheiras e o povo acariense é uma coisa só. Estamos todos com nossas raízes profundamente enraizadas neste chão.

A CARTA

Esta é a primeira carta que escrevi para o Gargalheiras. Foi em 2015. Nesse ano, o açude não recebeu água suficiente, os invernos não foram bons. Hoje ele está transbordando, graças a Deus! Abaixo, a carta que escrevi num ano de muita seca e muita tristeza de ver o gigante agonizando...

Está fazendo cem anos da seca de 1915. Rachel de Queiroz contou de forma mais verdadeira o que aconteceu naquele fatídico ano em seu romance “O Quinze”. Uma seca sem precedentes assolou o nordeste. Houve morte e êxodo. Foram erguidas regiões cercadas por arames farpados e vigiadas diariamente por soldados para confinar os nordestinos afetados pela seca e que chegavam aos milhares nas grandes cidades do nordeste. Corpos magros, de cabeças raspadas e numeradas se apinhavam aos montes dentro dos cercados. Um verdadeiro “campo de concentração”. Sabemos que as coisas são cíclicas e, mais uma vez, estamos vivendo uma seca terrível. No Seridó, muitos açudes secaram. Outros ainda terão água por mais alguns meses, no máximo, um ano. Se não chover, a coisa ficará muito feia e, talvez, haja êxodo e fome mais uma vez.

Escrevo, olhando o Gargalheiras da parte mais alta, onde fica a Pousada que leva seu nome. Demoro os olhos sobre a gigante barragem. Seca, mas inabalável. Até a crueza de suas pedras mais profundas reluzindo ao sol é bela. Pássaros brancos pescam os peixes agonizantes nas poças d”água que ainda restam. Na vinda para cá, na vila dos pescadores, pessoas faziam fila para pegar água nos caminhões pipas. Senti o silêncio e a tristeza no ar, pingo de meio dia.

O nosso gigante Gargalheiras agoniza. Choro enquanto escrevo. A emoção me toma de um jeito inexplicável. Sou parte disso. Minhas raízes buscam o solo e não encontram nada. Então também seco um pouco. O gigante parece dizer que vamos sobreviver a isso. Que é só mais uma provação. Somos feitos do mesmo material. Duros. Fortes. Há de chover. E tudo voltará a ser como antes. Somos cíclicos. Fênix. Ressurgirei. Ressurgiremos.                 
Acari, setembro de 2015.

EM, 2 DE ABRIL DE 2024

A minha carta, a minha prece era de amor e de profunda gratidão a este solo que nos deu a vida e que, um dia, vai recebê-la de volta. Disse ao gigante que sua dor reverberava em mim, em todos nós. Que ele aguentasse que era só uma fase. Que iria ressurgir ainda mais belo. Que não se entregasse às adversidades, que todos passamos por isso também. Que não perdesse a fé!

Por isso hoje eu choro de alegria e de emoção ao vê-lo cheio. Cheio de vida, de alegria. Ele não desistiu. Quem é sertanejo sabe das agruras da seca, mas não desistimos. Hoje, uma oração de gratidão a Deus ecoa em todos os corações acarienses e seridoenses porque somos um povo forte, que não desistimos.

Transborda, meu gigante, transborda esse mar de águas doces porque assim é o teu imenso coração!

Os comentários estão desativados.