Bom, barato e bonito
Nilo Emerenciano – Arquiteto, escritor e articulista Sendo o mais novo de dois irmãos, sobrou para mim a tarefa de comprar coisas para a minha mãe.
Nilo Emerenciano - Arquiteto, escritor e articulista
Sendo o mais novo de dois irmãos, sobrou para mim a tarefa de comprar coisas para a minha mãe. Fazer mandados, como se dizia nesse tempo sem celulares nem serviço de delivery. “ Menino, vá ao Café São Luís e diga assim:-Eu quero um pacote de café São Luís.” Eu repetia fielmente o que minha mãe falava. Um dia a moça não se conteve: Meu filho, aqui é a fábrica do café São Luís, não tem outra marca. Basta dizer que quer café...
Aliás, na Ribeira tinha de tudo: cartório, gráfica, laboratório, loja de tecidos, barbearias, alfaiates, clubes de remo, casas de recurso, mercado público, fábrica de guaraná, o Grande Hotel. Tinha a fábrica de Vinagre Natal, de Haroldo Lucena. Haroldo conhecia meus pais, e quando estava presente não permitia que eu pagasse. Na fábrica de cuscuz eu comprava dois, o homem botava dentro de uma quenga, derramava leite de coco e era só sair comendo na rua, com as mãos. Na Avenida Tavares de Lyra existia a Agência Pernambucana, de Luís Romão, dono dos barcos que faziam a travessia para a Redinha e distribuidor de revistas. A livraria Ismael Pereira, muito elegante, mas que não amarrava as chuteiras da livraria Lima, de seu Lima, estilo antigo, que fazia voar a nossa imaginação. As ruínas, ainda com as marcas do fogo, da antiga loja 4400. A Peixada Potengi. A confeitaria Delícia, do português Olívio. O Carneirinho de Ouro. A mando de papai eu ia buscar o carro de praça, como chamavam antigamente, na praça de carros da Tavares de Lyra. Eram uns Studebakers pretos. Eu sentava na frente e pousava de importante, sonhando um dia guiar um daqueles. Ali, na Tavares de Lyra, conheci Zé Areia. Papai apontou: esse cara é muito engraçado, foi Rei Momo. É cheio de anedotas...
Esse status de menino de mandados fez com que eu conhecesse as bodegas todas da vizinhança. A de seu Arthur, na Almino Afonso, era a favorita, pois no caminho eu passava pelas portas dos cabarés e esticava o olho para ver as meninas ainda em trajes de dormir. Na de seu Criseudo, o menino que eu era brechava as conversas dos adultos que se acotovelavam no balcão para tomar a caninha do almoço. Essas bodegas tinham de tudo: fumo de rolo, carbureto, bolachas secas, conhaque são João da Barra, Cinzano, peixe seco, umas rodelinhas de madeira para carros de brinquedo. Mas nada era tão fascinante como a feira das Rocas, nas segundas-feiras.
Lá tinha peixe elétrico vivo, vindo do Amazonas, e a gente fazia fila para levar o choque. O homem da cobra, tagarela, vendendo remédios para todas as mazelas, de reumatismo a impotência sexual. Havia outro que perguntava ao macaco de chapéu de couro e saias: o que a mulher faz quando tá com calor? E o macaco coçava freneticamente as regiões baixas para a risadagem de todos.
Lembro, entre outras coisas, de uma porção de casinhas numeradas postas em círculo. O dono do negócio soltava um preá e a gente ficava torcendo pra ele entrar na casinha certa. Ficava um tempão olhando aquilo e dona Penha em casa, esperando eu voltar com as compras...
Mas o ponto alto era a “praça de alimentação” da feira. A gente comprava tapiocas servidas em uma folha de bananeira, rolete de cana, pitombas, laranjas descascadas em uma maquininha, puxa-puxa, grude, tareco, pé-de-moleque, alfenins, geleia de coco, arroz doce, um refresco composto de garrafas de várias cores colocado sobre gelo raspado de uma barra – uma delícia! E uma iguaria que há anos não vejo em lugar algum: uma rodela de goma fina e crocante chamada pecado maneiro.
Ali perto, alguns anos depois, inauguraram um cinema, o Panorama. Fui ver o filme de estreia, o Satânico Dr. No, do então desconhecido agente secreto James Bond. Em meio à sessão, faltou energia. Devolveram o ingresso e ao chegar à rua ouvi os comentários das pessoas. Olhando para os lados da Cidade Alta, vi o clarão vermelho no céu noturno: o velho mercado da cidade estava em chamas. Na ocasião eu não sabia, mas aquela tragédia marcava o fim de uma era, pois a partir dali surgiriam os supermercados, criando novos hábitos de consumo e introduzindo novos produtos. Natal se modernizava.
Antigo Mercado Público que pegou fogo em 1967 e mais tarde virou Banco do Brasil, localizado na Av. Rio Branco (Cidade Alta) - Arquivo: Henrique Araújo
Mas, ao contrário do que muitos pensavam, as mercearias, as bodegas e as feiras populares continuaram a existir, com algumas mudanças, claro, mas firmes na manutenção da tradição popular da pechincha, da hora do grito, dos mendigos de ponto certo, dos cantadores, do cuscuz com galinha torrada que fascina meu amigo Gutenberg Costa, do dinheiro vivo, da freguesia fiel e amante do que é bom, barato e bonito.
Natal/RN
Que Boas lembranças me vieram a mente, lendo este Belo texto, a mercearia, me lembro do café São Luiz que até pouco tempo ainda preservava a antiga cultura dos velhas guarda sentados e jogando conversa fora. Parabéns 👏👏
Parabéns pelo texto bem redigido nos dando uma sensação de bem estar e uma vontade de quero mais.
Texto muito bom e divertido q me remeteu a esta época. Só não vivenciei muito a Ribeira e Rocas , pois morava mais afastada, na Cidade Alta. Mesmo sendo mulher TB obedecia aos mandados de comprar alguma coisa na “venda” de Ésio. Recordar é viver no tempo do bom, bonito e barato.
Lindas e maravilhosas lembranças da nossa infância. Parabéns
Nossa lembro de muita coisa ,mas a que marcou mesmo foi o mercado da cidade ,eu morava no alecrim e de lá a gente via o céu cinza de fumaça que a notícia não chegava tão rápido como hoje , quando chegou finalmente a notícia que o mercado do da cidade Alta há incendiado ,como sempre rsrs logo tbm surgiu a notícia que o prefeito daquela época havia mandado fazer isso que era para trazer o BB para o centro da cidade ,o prefeito da época era Agnelo Alves ,e assim ficamos sem saber se foi verdade ou não rarsrs,boas recordações que trás um belo sorriso de que é bom vivenciar coisas boas e ter a sua história para contar, parabéns 👏👏👏 lindo texto
Essa Natal eu não cheguei a conhecer… a minha Natal é a de Candelária. Nos anos 80. Do banrejão de seu Luiz.
O tempo se repete é deixa saudades nos mortais…
Estive no incêndio criminoso do Mercado da Cidade.
Na época, com 14 anos, fiquei atônito com as cenas de desespero que presenciei.
Da Ângelo Varela, onde morava, corri até lá, onde encontrei meu cunhado Tó( Antônio Neto Gaspar), engenheiro da AGAspar, responsável pela construção do Winston Churchill, então em pleno madeiramento e vulnerável ao incêndio, bem ao lado, caso ele saisse do interior do mercado e atravessasse para as centenas de barracões de madeira, que cercavam o mercado.
No desespero para salvar as mercadorias que abarrotavam seu comércio, justamente na sexta-feira, para vender no sábado, as pessoas gritavam e corriam para todos os lados…
Dentro do Mercado, trancado e em chamas, ninguém podia entrar. Ratos saiam aos Montes. Galinhas gritavam de dor, junto com gatos e cachorros, presos lá dentro.
Quando abriram uma porta, era impossível entrar devido ao desabamento do telhado e explosão dos botijões de gás.
Nunca tomei tanto refresco de maracujá etc, quando eles eram despejados no chão, para salvar o recipiente.
Foram cenas que jamais esquecerei.
Puxa. Isso me transportou a minha infância pobre em uma currutela no Mato Grosso (hoje Mato Grosso do Sul). Boas lembranças. Parabéns ao autor.