Pe. Matias Soares
Pandemia nos coloca em estado de crise. Já faz parte da constatação comum o fato de que, o que é humanamente e globalmente instituído está sofrendo as consequências dos malefícios causados pela pestilência. Estamos imersos numa situação de anormalidade que tem uma causa definida: é um vírus para o qual ninguém estava preparado. A humanidade tecnocrática e individualista, marcada por um comportamento autossuficiente e consumista, depara-se com a desconstrução do que é estrutural, no campo da economia, da política, da cultura e, ainda mais, no do ordenamento sanitário. A conjuntura eclesial, por está situada no tempo e no espaço, com sua historicidade humana e divina, sofre também as consequências deste momento atípico.
Nessa nova ordem assistêmica, que nos é posta, uma hermenêutica do sujeito faz-se necessária. Juntamente com as estruturas, a identidade subjetiva da condição humana está em colapso. Uma nova trajetória epistemológica está para ser reformada. Juntamente com as sequelas corporais, o vírus deixa as psicológicas e as espirituais. Há uma desconstrução psicossomática. Nesse incerto mundo novo, as questões existenciais passam a ser mais uma vez objeto de análises e questionamentos. Novos estilos devem ser construídos para que existam constituições de realidades novas. A maratona para essa utopia, acompanhados pelos sonhos e novidades promissoras, faz-se necessária. Ela vai existir com possibilidades ignotas. Os mais previdentes terão uma chance remota de galgar terras até então inóspitas. Ainda estamos a saber qual itinerário será percorrido.
Na vanguarda deste tempo sombrio alguém tenta nos oferecer pistas. A referência é o Papa Francisco. Até o momento, é o único líder mundial que nos indica uma luz. Basta lermos a Fratelli Tutti, que trata “sobre a fraternidade e a amizade social”. Segundo ele, “enquanto redigia esta Carta, irrompeu de forma inesperada a pandemia da Covid-19, que deixou descobertas as nossas falsas seguranças. Apesar das várias respostas que deram os diferentes países, ficou evidente a incapacidade de agir em conjunto. Embora estejamos superconectados, verificou-se uma fragmentação que tornou mais difícil resolver os problemas que afetam a todos. Se alguém pensa que se trata apenas de fazer funcionar melhor o que já fazíamos, ou que a única lição a aprender é que devemos melhorar os sistemas e regras já existentes, está negando a realidade” (FT, 7). Podemos considerar este documento do magistério social da Igreja como uma riquíssima pista de reflexão e ação para a humanidade, neste momento crítico da história contemporânea. Ela é uma carta, que nos faz ver a realidade, julga com o Evangelho (FT, Cap. II) e nos mostra que a fraternidade para a qual nos chama Jesus Cristo é o que promoverá a amizade social e via para a existência de um mundo melhor.
Uma nova construção programática é uma esperança a ser germinada. Assim, como depois da II guerra mundial, a civilização volta-se para ordenar, a partir da extinção da pandemia, os outros tantos mecanismos que possibilitam a vida em sociedade. Na Igreja, essa intenção ainda está arrefecida nas mentes de muitos que constituem o coletivo; principalmente da parte de vários ministros ordenados, que institucionalmente foram ‘acostumados’ a ter as seguranças proporcionadas pelo arcabouço do que foi construído historicamente. Muitos esperam a volta do normal, como se esse pudesse ser definido. As anomias do tempo presente, sem um referencial paradigmático ao qual podemos nos agarrar, nos deixam inseguros para o futuro que desejamos.
O Papa Francisco nos traz, mais uma vez, luzes, ao descrever a situação como “uma tragédia global que despertou, por algum tempo, a consciência de sermos uma comunidade mundial que viaja no mesmo barco, em que o mal de um prejudica a todos. Nos recorda que ninguém se salva sozinho, de que só é possível salvar-nos juntos” (FT, 32). Continua ele, afirmando que “a tempestade desmascara a nossa vulnerabilidade e deixa descoberto as falsas e supérfluas seguranças com que construímos os nossos programas, os nossos projetos, os nossos hábitos e prioridades” (Idem). A situação é de extrema complexidade. Mas assim como o contexto nos coloca diante das possiblidades de ‘nulidade’, e eis aí a situação de crise, este também pode ser uma via de ressignificação direcionada pela possibilidade de valores como o cuidado pelo outro, a afirmação da compaixão (Idem. FT, cap. II) na relação com os que encontramos pelo caminho da nossa existência e da história. Parando para contemplar os sinais dos tempos, a partir do Evangelho, conseguiremos qualificar a condição humana e o ethos eclesial com as marcas virtuosas da verdade, da justiça e do amor ao próximo.
Quando fazemos a memória da história e tomamos um outro pronunciamento do Sumo Pontífice no ‘Encontro com os participantes do V Congresso da Igreja Italiana’, em 10 de novembro de 2015, no qual ele afirma que “só podemos falar de humanismo a partir da centralidade de Jesus, descobrindo n’Ele os traços do autêntico rosto do homem, temos ainda mais elementos para embasar a nossa perspectiva. É pela contemplação da face de Jesus morto e ressuscitado que recompõe a nossa humanidade, inclusive daquela fragmentada pelas dificuldades da vida, ou marcada pelo pecado, que nos imbuímos de profunda convicção acerca da nossa responsabilidade neste momento desafiador para todos os povos. Não devemos domesticar o poder da face de Cristo. A face é a imagem da sua transcendência. É o misericordiae vultus. Deixemo-nos olhar por Ele. Jesus é o nosso humanismo. Deixemo-nos inquietar sempre pela sua pergunta: ‘Vós, quem dizeis que eu sou?’” (Mt 16, 15), podemos, com ele, assumir três sentimentos que podem ser marcas da vocação cristã para esta fase peculiar da história e atitudes civilizatórias deste possível ‘novo humanismo’, a saber: humildade, abnegação e bem-aventurança. Essas são três vias que considero atualíssimas para este tempo em que, a partir do significado da Kenosis Cristológica, a Igreja é chamada a ser e estar inserida nos dramas humanos que nos são postos pela pandemia. De acordo com Francisco:
“uma Igreja que apresenta estas três características - humildade, abnegação e bem-aventuranças - é uma Igreja que sabe reconhecer a ação do Senhor no mundo, na cultura, na vida diária das pessoas. Já disse mais de uma vez e repito-vos de novo hoje: ‘prefiro uma Igreja acidentada, ferida e enlameada por ter saído pelas estradas, a uma Igreja enferma pelo fechamento e a comodidade de se agarrar às próprias seguranças. Não quero uma Igreja preocupada com ser o centro, e que acaba presa num emaranhado de obsessões e procedimentos’” (EG, 49).
A tragédia causada pela peste tem nos condicionado a repensarmos as nossas estruturas eclesiais. Como já foi assinalado no título, o nosso olhar volta-se para a situação das paróquias. É nelas que ‘acontece’ a vida cristã e eclesial. Ainda não foi cogitada uma outra realidade que as substituam. Desde o IV século da era cristã, tem sido por meio delas que a vida da Igreja vem existindo até os nossos dias. Pela sua capilaridade católica e orgânica, as mesmas ocupam um papel de primazia na veiculação da Palavra de Deus, a vida sacramental e a ação caritativa da vida eclesial. Sobre as mesmas escreveu o Papa Francisco, a saber:
“A paróquia não é uma estrutura caduca; precisamente porque possui uma grande plasticidade, pode assumir formas muito diferentes que requerem a docilidade e a criatividade constantemente, continuará a ser ‘a própria Igreja que vive no meio das casas dos seus filhos e das suas filhas’. Isto supõe que esteja realmente em contato com as famílias missionária do Pastor e da comunidade. Embora não seja certamente a única instituição evangelizadora, se for capaz de se reformar e adaptar e com a vida do povo, e não se torne uma estrutura complicada, separada das pessoas, nem um grupo de eleitos que olham para si mesmos. A paróquia é presença eclesial no território, âmbito para a escuta da Palavra, o crescimento da vida cristã, o diálogo, o anúncio, a caridade generosa, a adoração e a celebração. Através de todas as suas atividades, a paróquia incentiva e forma os seus membros para serem agentes da evangelização. É comunidade de comunidades, santuário onde os sedentos vão beber para continuarem a caminhar, e centro de constante envio missionário. Temos, porém, de reconhecer que o apelo à revisão e renovação das paróquias ainda não deu suficientemente fruto, tornando-as ainda mais próximas das pessoas, sendo âmbitos de viva comunhão e participação e orientando-as completamente para a missão” (EG, 28).
Este é o ensinamento mais atual que temos sofre a missão e a importância das paróquias. Juntamente com o que apresentamos antes disto, na Fratelli Tutti e no discurso pontifício aos participantes do Congresso italiano, podemos ter algumas indicações sobre o caminho a ser percorrido pela Igreja, a partir da dinâmica destas células eclesiásticas, na situação e conjuntura hodiernas. Com os referenciais para a vivência de um Novo Humanismo e com as prerrogativas pastorais a serem seguidas nas orientações dadas na Alegria do Evangelho, talvez tenhamos já algo a ser esboçado para nos adequarmos ao ‘novo normal’, sem saudosismo, nem ingenuidades fantasiosas e práticas alienantes das pessoas, como temos acompanhado em muitas destas comunidades. Uma ação missionária e pastoral, com possíveis atualidades e respostas a inquietações justas, está a exigir de todos nós, seres humanos e cristãos, membros destes corpos eclesiais, racionalidade, mística e testemunhos.
Por fim, temos que avançar pelas vias da contemplação e do discernimento evangélicos, que nos levarão à leitura dos novos sinais dos tempos. A Igreja continua a ser Sacramento Universal de Salvação. A sua vocação é testada em momentos de crises, como os atuais. O seu conteúdo sempre será o que está contido no Evangelho. É interessante como nada do que é sinalizado pela Palavra de Deus está estranho aos sofrimentos que assolam a vida dos seres humanos. A situação de padecimento da humanidade pode ser lida, interpretada e respondida já no desenrolar da vida de Jesus Cristo, especialmente no que é sintetizado no Mistério Pascal. É no cotidiano da paróquia, onde diariamente deve ser celebrado esse centro gravitacional, que é o Mistério da Fé e que tem uma razão cosmológica, que podemos encontrar a força e o sentido da existência cristã e, por isso, também antropológico. Assim o seja!