
Pe. Matias Soares - Pároco da Paróquia de Santo Afonso Maria de Ligório - Conj. Mirassol - Natal
A Campanha da Fraternidade faz sessenta anos neste ano do Senhor de dois mil e vinte três. Para todos nós, filhos da Igreja de Deus que está no Rio Grande do Norte, ela é motivo de muita alegria. Nas minhas andanças pelo mundo, especialmente com finalidade de estudos, ouvi muitos testemunhos e vi muitas pessoas que reconhecem a grandiosidade evangélica e eclesial da Campanha, desde as suas motivações intra-eclesiais até às extra-eclesiais, principalmente no favorecimento da recepção das inovações portadas pelo Concílio Vaticano II e as Conferências Episcopais Latino-Americanas, a saber Medellin (1968), Puebla (1979), Santo Domingo (1992) e Aparecida (2007).
O princípio hermenêutico para pensarmos a Campanha da Fraternidade é pensá-la a partir dos ensinamentos conciliares, especialmente a ‘Dei Verbum”, que nos ensina sobre a importância da palavra de Deus, a tradição viva da Igreja e o magistério eclesial o seguinte:
“O encargo de interpretar autenticamente a palavra de Deus escrita ou contida na Tradição, foi confiado só ao magistério vivo da Igreja, cuja autoridade é exercida em nome de Jesus Cristo. Este magistério não está acima da palavra de Deus, mas sim ao seu serviço, ensinando apenas o que foi transmitido, enquanto, por mandato divino e com a assistência do Espírito Santo, a ouve piamente, a guarda religiosamente e a expõe fielmente, haurindo deste depósito único da fé tudo quanto propõe à fé como divinamente revelado. É claro, portanto, que a sagrada Tradição, a sagrada Escritura e o magistério da Igreja, segundo o sapientíssimo desígnio de Deus, de tal maneira se unem e se associam que um sem os outros não se mantém, e todos juntos, cada um a seu modo, sob a ação do mesmo Espírito Santo, contribuem eficazmente para a salvação das almas” (cf. DV 9-10).
A Campanha, nesta perspectiva, e pensada neste contexto conciliar, tem que ser tida, antes de tudo, como um Projeto de Evangelização. Basta que conheçamos mais profundamente o seu desenrolar histórico (cf. L. Prates, Fraternidade Libertadora, pág. 21-63), com seus intricamentos com a realidade brasileira, sua cultura, desafios emergentes e dramas socioambientais. O espírito de cada época, ano após ano, é o fio que permite o conhecimento da constituição da Campanha, sempre sendo considerado o bem comum e a justiça do Reino de Deus. Os esquemas epistemológicos que foram assumidos pelos ‘textos bases’ consideraram o que era necessário para que a inserção nas ordens sistêmicas fosse eficaz e iluminadora dos sinais de contradição entre o que é projeto de Deus para todos e o que existe de fato nas várias situações de sofrimentos e desigualdades em nosso país.
Nos últimos anos têm surgido algumas polêmicas envolvendo as temáticas da Campanha. Os embates e leituras ideológicos são patentes. A ideia de que as propostas abordadas ferem o sentindo espiritual e litúrgico da Quaresma é só a escusa para os contrapontos políticos e difamatórios das ações discursivas e solidárias. É a força da ideologia tragando a beleza do Evangelho e o amor à Igreja que é menoscabado nos areópagos digitais. Os gurus da internet têm um papel de ‘magistério eclesiástico’.

As teorias da conspiração e o ‘bode expiatório’ da teologia da libertação assumem as narrativas fantasiosas e paranoicas. O mundo é o grande ringue da luta entre os verdadeiros católicos e os hereges do mundo satanizado dos infiéis. A Conferência Nacional dos Bispos do Brasil é um antro de comunistas e o Papa Francisco não é o verdadeiro papa. O cenário é desolador. Seria cômico, se não fosse tão triste o que vemos e ouvimos com muita frequência em lugares que frequentamos, ainda mais no lugar comum das mídias sociais.
Diante desta breve exposição, há algo que temos que ter presente quando afirmamos que a Campanha da Fraternidade é, antes de tudo, um ‘projeto de evangelização: é que a ideia de pastoral é um conceito em crise. Está desconstruído. A sociedade contemporânea, com sua mentalidade líquida e hipermoderna, fragmenta tudo e liquefaz toda tentativa de verdade objetiva. E a Igreja sempre tem muita dificuldade de lidar com as autonomias.
O Concílio tentou moldar o reconhecimento da subjetividade contemporânea com uma metodologia relacional e dialógica; mas até hoje continua extremamente desafiador vivenciar esse estilo. O mundo avança vertiginosamente e com perspectivas inquietantes na área da inteligência artificial, do pós-humanismo e das biotecnologias. O cuidado com casa comum, tanto requerido pelo Papa Francisco, é um ponto considerado como questão global de extrema importância e que vem sendo cada vez mais colocado como pauta de urgência para o futuro da humanidade. Então, o intento de desqualificar a Campanha também tem que ser posto num contexto mais complexo.

As polêmicas em torno das Campanhas são fruto de consciências eclesiais corrompidas e mundanas. O secularismo tem suas formas de se manifestar na mentalidade dos que são mais católicos do que o Papa e mais cristãos do que Jesus Cristo. Há uma distorção do que significa ‘sentir com a Igreja’. O radicalismo ideológico não condiz com o significado do que seja propriamente a ‘essência do cristianismo’. O espírito da discórdia renega a eclesiologia que reconhece ‘as diferenças polares e complementares’. A Campanha da Fraternidade, nessas novas ordens sistêmicas, é violentada e dispensada por causa do seu forte apelo à revisão das estruturas sociais causadoras de tantos sofrimentos e negação da dignidade de tantos brasileiros, que vivem em situação de exclusão e miséria.
Por fim, vale a orientação de Jesus Cristo aos discípulos de ontem e de hoje: “Dá-lhes vós mesmos de comer” (cf. Mt 14,16). Assim como Ele, somos chamados a sentir compaixão, assumir a nossa responsabilidade, a organizar e consagrar os dons para a superação do sofrimento das multidões, que não têm rosto e nem nome. É esse o espírito de todas as Campanhas da Fraternidade. Não entender isso, é não ter os mesmos sentimentos de Jesus Cristo. Assim o seja!