Jornalismo com ética e coragem para mostrar a verdade.

abril 23, 2023

ARTIGO – A Campanha da Fraternidade: um projeto de evangelização

Pe.

Pe. Matias Soares - Pároco da Paróquia de Santo Afonso Maria de Ligório - Conj. Mirassol - Natal

A Campanha da Fraternidade faz sessenta anos neste ano do Senhor de dois mil e vinte três. Para todos nós, filhos da Igreja de Deus que está no Rio Grande do Norte, ela é motivo de muita alegria. Nas minhas andanças pelo mundo, especialmente com finalidade de estudos, ouvi muitos testemunhos e vi muitas pessoas que reconhecem a grandiosidade evangélica e eclesial da Campanha, desde as suas motivações intra-eclesiais até às extra-eclesiais, principalmente no favorecimento da recepção das inovações portadas pelo Concílio Vaticano II e as Conferências Episcopais Latino-Americanas, a saber Medellin (1968), Puebla (1979), Santo Domingo (1992) e Aparecida (2007).

O princípio hermenêutico para pensarmos a Campanha da Fraternidade é pensá-la a partir dos ensinamentos conciliares, especialmente a ‘Dei Verbum”, que nos ensina sobre a importância da palavra de Deus, a tradição viva da Igreja e o magistério eclesial o seguinte:

“O encargo de interpretar autenticamente a palavra de Deus escrita ou contida na Tradição, foi confiado só ao magistério vivo da Igreja, cuja autoridade é exercida em nome de Jesus Cristo. Este magistério não está acima da palavra de Deus, mas sim ao seu serviço, ensinando apenas o que foi transmitido, enquanto, por mandato divino e com a assistência do Espírito Santo, a ouve piamente, a guarda religiosamente e a expõe fielmente, haurindo deste depósito único da fé tudo quanto propõe à fé como divinamente revelado. É claro, portanto, que a sagrada Tradição, a sagrada Escritura e o magistério da Igreja, segundo o sapientíssimo desígnio de Deus, de tal maneira se unem e se associam que um sem os outros não se mantém, e todos juntos, cada um a seu modo, sob a ação do mesmo Espírito Santo, contribuem eficazmente para a salvação das almas” (cf. DV 9-10).

A Campanha, nesta perspectiva, e pensada neste contexto conciliar, tem que ser tida, antes de tudo, como um Projeto de Evangelização. Basta que conheçamos mais profundamente o seu desenrolar histórico (cf. L. Prates, Fraternidade Libertadora, pág. 21-63), com seus intricamentos com a realidade brasileira, sua cultura, desafios emergentes e dramas socioambientais. O espírito de cada época, ano após ano, é o fio que permite o conhecimento da constituição da Campanha, sempre sendo considerado o bem comum e a justiça do Reino de Deus. Os esquemas epistemológicos que foram assumidos pelos ‘textos bases’ consideraram o que era necessário para que a inserção nas ordens sistêmicas fosse eficaz e iluminadora dos sinais de contradição entre o que é projeto de Deus para todos e o que existe de fato nas várias situações de sofrimentos e desigualdades em nosso país.

Nos últimos anos têm surgido algumas polêmicas envolvendo as temáticas da Campanha. Os embates e leituras ideológicos são patentes. A ideia de que as propostas abordadas ferem o sentindo espiritual e litúrgico da Quaresma é só a escusa para os contrapontos políticos e difamatórios das ações discursivas e solidárias. É a força da ideologia tragando a beleza do Evangelho e o amor à Igreja que é menoscabado nos areópagos digitais. Os gurus da internet têm um papel de ‘magistério eclesiástico’.

As teorias da conspiração e o ‘bode expiatório’ da teologia da libertação assumem as narrativas fantasiosas e paranoicas. O mundo é o grande ringue da luta entre os verdadeiros católicos e os hereges do mundo satanizado dos infiéis. A Conferência Nacional dos Bispos do Brasil é um antro de comunistas e o Papa Francisco não é o verdadeiro papa. O cenário é desolador. Seria cômico, se não fosse tão triste o que vemos e ouvimos com muita frequência em lugares que frequentamos, ainda mais no lugar comum das mídias sociais.

Diante desta breve exposição, há algo que temos que ter presente quando afirmamos que a Campanha da Fraternidade é, antes de tudo, um ‘projeto de evangelização: é que a ideia de pastoral é um conceito em crise. Está desconstruído. A sociedade contemporânea, com sua mentalidade líquida e hipermoderna, fragmenta tudo e liquefaz toda tentativa de verdade objetiva. E a Igreja sempre tem muita dificuldade de lidar com as autonomias.

O Concílio tentou moldar o reconhecimento da subjetividade contemporânea com uma metodologia relacional e dialógica; mas até hoje continua extremamente desafiador vivenciar esse estilo. O mundo avança vertiginosamente e com perspectivas inquietantes na área da inteligência artificial, do pós-humanismo e das biotecnologias. O cuidado com casa comum, tanto requerido pelo Papa Francisco, é um ponto considerado como questão global de extrema importância e que vem sendo cada vez mais colocado como pauta de urgência para o futuro da humanidade. Então, o intento de desqualificar a Campanha também tem que ser posto num contexto mais complexo.

Voluntários do Pamana distribuem comida para famílias de Planaltina

As polêmicas em torno das Campanhas são fruto de consciências eclesiais corrompidas e mundanas. O secularismo tem suas formas de se manifestar na mentalidade dos que são mais católicos do que o Papa e mais cristãos do que Jesus Cristo. Há uma distorção do que significa ‘sentir com a Igreja’. O radicalismo ideológico não condiz com o significado do que seja propriamente a ‘essência do cristianismo’. O espírito da discórdia renega a eclesiologia que reconhece ‘as diferenças polares e complementares’. A Campanha da Fraternidade, nessas novas ordens sistêmicas, é violentada e dispensada por causa do seu forte apelo à revisão das estruturas sociais causadoras de tantos sofrimentos e negação da dignidade de tantos brasileiros, que vivem em situação de exclusão e miséria.

Por fim, vale a orientação de Jesus Cristo aos discípulos de ontem e de hoje: “Dá-lhes vós mesmos de comer” (cf. Mt 14,16). Assim como Ele, somos chamados a sentir compaixão, assumir a nossa responsabilidade, a organizar e consagrar os dons para a superação do sofrimento das multidões, que não têm rosto e nem nome. É esse o espírito de todas as Campanhas da Fraternidade. Não entender isso, é não ter os mesmos sentimentos de Jesus Cristo. Assim o seja!

Os comentários estão desativados.