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agosto 6, 2023

NILO Emerenciano  – Arquiteto e escritor  Desde crianças ouvimos afirmações Desde crianças ouvimos afirmações louvando os tempos que passaram e, por óbvio, criticando duramente o presente, tipo: antigamente é que era bom.

NILO Emerenciano  - Arquiteto e escritor 

Desde crianças ouvimos afirmações Desde crianças ouvimos afirmações louvando os tempos que passaram e, por óbvio, criticando duramente o presente, tipo: antigamente é que era bom. Ou ainda: se vivia mais, a vida era mais amena, a alimentação era melhor, os jovens mais educados, os pais eram respeitados, por aí. E a gente cria uma noção idílica e errada do que foi a vida quando ainda não havíamos nascido. No fundo nada disso corresponde à verdade.   

Sobre adolescentes, por exemplo. Há textos gregos de antes de Cristo em que se reclama dos jovens como incorrigíveis criadores de problemas. Os casamentos de outrora eram arranjados, contratado entre os pais sem a jovem sequer ser consultada. E era enorme o número de crianças rejeitadas por motivos vários. Falar nisso a mortalidade infantil tinha números alarmantes. As mulheres tinham quinze filhos e apenas cinco ou seis sobreviviam. E as doenças venéreas, em tempos sem penicilina ou antibióticos muito menos camisinhas? 

Quem admira a Idade Média desconhece que as ruas eram esgotos a céu aberto, urina e fezes eram atiradas pelas janelas, azar de quem fosse atingido. Os dentes daquela gente eram estragados. Nada de dentes de Richard Gere ou Sean Connery. Não havia talheres. Comer com as mãos era o habitual. Aquelas caças à raposa eram para que fosse feita faxina no castelo, quando o fedor era insuportável. Sim, o cinto de castidade existia, quem sabe foi aí que surgiram os chaveiros. Ah, ia esquecendo: os que gostam de ver os duelos de cavaleiros em suas armaduras, tipo Ivanhoé, leiam O Último Duelo, de Eric Jager. Vão ver que não havia nada de heroico ou romântico naquilo.  

Cinto de castidade era uma armadura íntima, feita de ferro, colocada na mulher e fechada com
cadeado tornando suas partes íntimas inacessíveis a outro que não o marido

E a medicina em seus primórdios? Os hospitais competiam com os açougues. Quer se horrorizar? Leia Medicina dos Horrores, de Lindsey Fitzharris. Vai descobrir que os cirurgiões trabalhavam sem luvas pois não se conheciam os micro-organismos nem fora descoberta a anestesia. O bom cirurgião era o mais rápido no procedimento, pois o paciente não aguentava as dores. Uma perna podia ser amputada em 30 segundos, a frio, imaginem. É mole ou quer miojo?  

“Ah, mas no começo do século XX, tempo dos meus avós, era o paraíso. ”Desculpa atrapalhar seus devaneios. Sabem da existência da roda dos enjeitados, lugar para colocar recém-nascidos não desejados? A mãe ia furtivamente durante a madrugada, colocava o bebê na roda, girava até ele ficar do lado de dentro, tocava uma sineta e ia embora. As freiras recolhiam a criança. Isso se fazia no Recife e no Rio de Janeiro. Essa prática já existia na Roma antiga de forma mais grosseira. E subsiste ainda hoje com métodos mais sofisticados, claro, em pelo menos um país da Europa. O que mostra que não melhoramos tanto assim. 

Gilberto Freyre (Casa Grande & Senzala) conta que os dejetos - cocô, xixi - dos sobrados de Recife antigo eram reunidos em barris e transportados nas costas por escravos e despejados nos rios ou praias. No trajeto o líquido malcheiroso escorria e caia nas costas dos escravos, marcando-lhes a pele com longas estrias brancas, daí serem chamados escravos-tigres. É suficiente ou querem mais?  

ESCRAVOS TIGRES: a triste história dos encarregados de limpar as fezes das cidades brasileiras

Claro que a nossa polícia e sistema judiciário são repletos de falhas, mas nada se compara com as execuções ao tempo da Idade Média, feitas em público e com requintes de violência. Para a população era uma distração, um programa do domingo, onde se levavam as crianças e eram disputados os melhores lugares para ver pessoas serem espancadas, terem a pele e membros arrancados até finalmente a morte.

A guilhotina, tão malvista por nós, foi na verdade um progresso, pois tornou a execução algo mais rápido, menos sangrento e limpo. E o chamado julgamento de Deus? Jogava-se o suspeito na água. Se ele afundasse e morresse é porque era inocente, que pena. Mas se sobrenadasse e sobrevivesse era culpado, e aí era executado.  

A escravidão foi crueldade inaceitável? Sim, é verdade. Mas antes simplesmente se executavam os prisioneiros de guerra até que finalmente alguém teve a grande sacada: por que matar se podemos obrigá-los a trabalhar de graça e ter mão de obra barata? Deu no que deu. Acho, porém, que a escravidão dos tempos antigos não era tão dura quanto a do Brasil Colonial. Os hebreus, escravos no Egito, ao serem libertados levavam ouro, prata, animais de criação. Onde e como adquiriram isso? Os egípcios não se deixariam roubar. A alternativa que resta é: ganharam em troca do trabalho, que, isso sim faz sentido, deveria ser feito em condições aviltantes.  

E por falar em condições de trabalho, para os que reclamam que trabalham muito: durante a Revolução Industrial (século XVII) a jornada era de 12 a 16 horas por dia e poucos minutos para refeição. Sem plano de saúde, férias, aposentadoria, licença - gravidez, décimo terceiro ou direitos de qualquer tipo. 

Mais algumas curiosidades. Nos anos 1970 vendia-se um chocolate embalado como um cigarro. Chaveiros ostentavam uma pata amputada de coelho. Era o tal do pé-de-coelho, que dava sorte, menos para os coelhos. Aves e outros animais silvestres eram livremente vendidos nas feiras e estradas. Aves de arribação (avoetes, em Mossoró) eram mortas aos montes sem nenhum controle ou fiscalização. Em tempo: nem se usava a expressão “politicamente correto”.  

Já se convenceu? O melhor lugar e tempo do mundo é aqui e agora. Aproveitemos bem isso, pois o passado e o futuro são apenas recordações e planos. De concreto temos o presente.

Às vezes, nem acreditamos nisso, como quando tomamos conhecimento da chacina de 16 pessoas em Guarujá, na Baixada Santista, e um governador vir a público afirmar que foi uma operação policial “bem-sucedida”.  

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