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outubro 11, 2020

Amor sem fim

João Maria de Lima.

João Maria de Lima. É mipibuense, professor, Conselheiro Estadual de Educação e atual diretor da Escola da Assembleia.


“Na escuridão o teu olhar me iluminava
e minha estrela-guia era o teu riso.
Coisas do passado
são alegres quando lembram
novamente as pessoas que se amam.”

Flávio Magalhães Mendes (Roupa Nova)

            A saudade é um sentimento, paradoxalmente, cheio de ausência. Temos saudade porque a pessoa amada está ausente. Essa falta, esse vazio é um buraco na alma que se abre quando um pedaço nos é arrancado. Nesse buraco, mora a memória de quem amamos, tivemos e perdemos. Por isso, a saudade é a presença da ausência.

            No meu caso, falo de amor materno; ou melhor, duplamente materno. A minha maior saudade vem do triste dia 6 de setembro de 2005, quando deixei de sentir os braços quentes de minha avó Luzia. Depois desse dia, quero voltar no tempo, quero ir aos lugares a que já fui e que não posso mais. Só os tenho na alma.

            A saudade do carinho de minha vó Luzia é facilmente explicada. Ela foi minha companheira de boas lembranças, mesmo sem ter sido aquela avó que vivia para fazer os gostos e defender as astúcias do neto. Sim, falo no singular porque fui o primeiro e único neto dela por 8 anos. Foi ela quem me deu o peito para alimentar-me na impossibilidade de minha mãe (vovó Luzia tinha um filho de 1 ano quando eu nasci).

Esse gesto de amamentar um filho que não veio de você é tão nobre que chamamos quem o faz de mãe (ou ama) de leite. Ela foi testemunha ocular da aurora da minha vida e da minha adolescência. Só saí de baixo de suas asas com dezessete anos. Chega uma hora em que o passarinho precisa deixar o ninho.

Então, mais que um neto, eu também fui filho, o mais novo. Aquele a quem ela se agarrava para passar-lhe o frio e a quem fez questão de dar colo até seus últimos dias.

O amor de uma avó deveria ser um decreto universal dos direitos de qualquer criança. Do mesmo jeito, o amor à avó deveria sê-lo. Amor de avó éalgo tão divino que só entendemos quando crescemos, porque tal amor é puro e inocente, como são as crianças. Está lá em Provérbios 17:6: “Os filhos dos filhos são uma coroa para os idosos, e os pais são o orgulho dos seus filhos”.

Dona Luzia teve uma vida muito dura, antes de se casar com meu avô Esmeraldo e depois da morte dele. Enfrentou a viuvez com muitas dificuldades financeiras, mas com muita fibra e disposição para trabalhar. Fê-lo, arduamente, em plantação de batatas e nas lidas domésticas, em sítios, na enxada e em tantos outros serviços braçais. Isso tudo, aliado às agruras da infância e da juventude, tornou-lhe uma mulher de saúde frágil, apesar de nunca ter aparentando isso para os filhos, a quem ela sempre conduziu pela estrada da virtude, desde os primeiros passos da vida, tendo certeza de que eles nunca se afastariam.

O escritor português Almeida Garret disse que “a mãe é a mais bela obra de Deus” e Carlos Drummond de Andrade chegou a questionar a autoridade divina, por causa das mães:

Por que Deus permite
Que as mães vão-se embora?
Mãe não tem limite
É tempo sem hora
Luz que não apaga
Quando sopra o vento
E chuva desaba
Veludo escondido

Na pele enrugada                                                      Água pura, ar puro
Puro pensamento
Morrer acontece
Com o que é breve e passa
Sem deixar vestígio
Mãe, na sua graça
É eternidade
Por que Deus se lembra
- Mistério profundo -
De tirá-la um dia?

Fosse eu rei do mundo
Baixava uma lei:
Mãe não morre nunca
Mãe ficará sempre
Junto de seu filho
E ele, velho embora
Será pequenino
Feito grão de milho

Meus anos de convivência diária com vovó Luzia são inesquecíveis. O acordar cedo, fogão feito com lenhas, a tradição pernambucana de comer massa de fubá mais endurecida ( o que ela chamava de “quarenta”), a charque no feijão  (o que não podia faltar), bolinho de feijão amassado na mão dela (ainda não comi outro igual), deitar no chão frio com ela após o almoço, na porta da sala. Ali estava decretado: não entrava ninguém para não atrapalhar nossa preciosa sesta. Antes do jantar, tomar uma xícara grande de café, ouvindo o rádio, esperando a Ave, Maria, na voz de Luiz Gonzaga, para só depois tomar a sopa. Tudo isso acontecia em um cenário de muito amor recíproco, do raiar do dia ao apagar do candeeiro.

Fui seu confidente fiel e guardador de segredos. Com menos de sete anos, eu já escrevia suas correspondências, cujos destinatários eram os irmãos em Condado, interior de Pernambuco. A mãe analfabeta que fala pela escrita de um filho tem nele toda a confiança. Deste jeito era nossa relação: cheia de cumplicidades, de proteção e carinho, assim como é amor das avós com os netos.

O amor de avó e neto é daqueles que não existem razões, como bem disse Drummond. É dado de graça, semeado no vento.  Contudo, para mim,  a melhor definição de amor de avó é uma que está em Coríntios: 1:4: “O amor é paciente, o amor é bondoso. Não inveja, não se vangloria, não se orgulha”.

Durante muito tempo, lamentei a ausência de minha vó, mas achei na poesia um alento; principalmente, depois que li o poema Ausência, de Drummond (de novo, ele), que dialoga com minha alma:

Por muito tempo achei que ausência é falta. E lastimava, ignorante, a falta. Hoje não a lastimo. Não há falta na ausência. A ausência é um estar em mim. E sinto-a, branca, tão pegada, aconhegada nos meus braços, que rio e danço e invento exclamações alegres, porque a ausência, essa ausência assimilada, ninguém a rouba de mim.

Ninguém rouba de mim a ausência de Dona Luzia porque ela já está assimilada em mim. O que trago dela não está destinado a desaparecer com a passagem do tempo. Cecília Meireles disse: “É nisto que se resume o sofrimento: cai a flor, - e deixa o perfume no vento”. Apesar disso, hoje, entendo melhor a transitoriedade da vida, a regularidade dos ciclos da natureza. Sem a morte, a vida não existiria. Uma canção não poderia ser cantada sem a palavra que a encerra. Consolo-me com uma frase de Exupéry:“Aqueles que passam por nós, não vão sós, não nos deixam sós. Deixam um pouco de si, levam um pouco de nós.”

Uma resposta para “Amor sem fim”

  1. Joseli disse:

    Perfeito. Só amor!