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fevereiro 18, 2024

A última Flor de Lácio e o animal desconhecido

Por Ricardo Sobra – advogado Faz tempo, mas recordo como se fosse hoje.

Por Ricardo Sobra - advogado

Faz tempo, mas recordo como se fosse hoje. Debate jurídico envolvendo caso polêmico, resolvi apartear o contendor que estava em vantagem, em socorro ao que apanhava.

Ele disse: "- Meu cliente está com a razão e eu estou montado no bom português".

Retruquei: "- Cuidado para não cair, pois Vossa Excelência está montado em animal que não conhece".

A parir desse momento, a dialética do julgamento começou a se equilibrar.

O Doutor era palavroso, abusava do pleonasmo, vício de linguagem caracterizado pela repetição e redundância de ideias na transmissão do pensamento. Nele, o uso excessivo de palavras parecia ser orgânico.

Hoje, um ilustre amigo me enviou um texto de sua autoria, excelente no conteúdo e na forma. Entretanto, lá pelo meio meteu um pleonasmo, comprometendo sua higidez vernacular. Nesse caso, conhecendo o escriba, tenho certeza de que foi um cochilo, uma displicência.

Ora, ora, em seu favor, dir-se-á que não encontra-se em má companhia. Afinal, escritores consagrados também cometeram pleonasmo. Vejamos, ilustrativamente:

- Ó mar salgado, quanto do teu sal são lágrimas de Portugal (Fernando Pessoa);

- Morrerás morte vil nas mãos de um forte (Gonçalves Dias);

- Tenha pena de tua filha, perdoa-lhe pelo divino amor de Deus (Camilo Castelo Branco);

- Quando com os olhos eu quis ver de perto (Alberto de Oliveira).

Olavo Bilac, cognominado “Príncipe dos Poetas”, nossa maior expressão no parnasianismo, e um dos fundadores da Academia Brasileira de Letras, escreveu um poema homenageando a língua portuguesa: "A Última Flor do Lácio".

Explica-se à voo de pássaro a expressão título do poema: a língua portuguesa é considerada a última das filhas do latim, ou seja, é a última língua neolatina. Foi formada a partir do latim vulgar falado pelos soldados da região do Lácio, diferente do latim clássico falado pelos estamentos sociais ‘elevados’. Daí o “inculta”.

Lembro os pleonasmos mais comuns do cotidiano brasileiro: pequenos detalhes, conclusão final, as consequências vêm depois, adiar para depois, encarar de frente, consenso geral, repetir de novo, certeza absoluta, há muitos anos atrás, intempéries do tempo, interstício de tempo, entrar para dentro, sair para fora, descer para baixo, subir para cima, últimos acabamentos, regra geral, surpresa inesperada, elo de ligação, fato verídico, escolha opcional, duas metades iguais, seguir em frente, comparecer pessoalmente, dar de graça, viúva do falecido, cego dos olhos, surdo do ouvido, labaredas de fogo, prevenir antes, brisa matinal da manhã, amanhecer o dia, um mês de mensalidade, pessoa humana, maluco da cabeça, conviver junto, hemorragia de sangue, sintoma indicativo, última versão definitiva.

Ôpa! Cansei! Para amenizar, vamos ao poema de Bilac:

- LINGUA PORTUGUESA – A ÚLTIMA FLOR DO LÁCIO – OLAVO BILAC:

Última flor do Lácio, inculta e bela,
És, a um tempo, esplendor e sepultura:
Ouro nativo, que na ganga impura
A bruta mina entre os cascalhos vela
Amo-te assim, desconhecida e obscura
Tuba de alto clangor, lira singela
Que tens o trom e o silvo da procela,
E o arrolo da saudade e da ternura!
Amo o teu viço agreste e o teu aroma
De virgens selvas e do oceano largo!
Amo-te, ó rude e doloroso idioma,
Em que da voz materna ouvi: “meu filho”,
E em que Camões chorou, no exílio amargo,
O gênio sem ventura e o amor sem brilho!
Até a próxima, ou melhor, até o próximo pleonasmo.

Inté...

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