A FESTA DOS GATOS 

setembro 1, 2024

NILO Emerenciano  – Arquiteto e escritor  Não é uma cidade, nem mesmo das pequenas.

NILO Emerenciano  - Arquiteto e escritor 

Não é uma cidade, nem mesmo das pequenas. Talvez um vilarejo, arrabalde, ou como chamam hoje, uma comunidade. Aliás, certas coisas só acontecem em lugares assim restritos, onde todos conhecem todo mundo e não há muito assunto a conversar. Qualquer coisa que cai na boca do povo viraliza fácil. E ai dos diferentes, dos excêntricos, dos fora da curva. Os taciturnos são olhados com desconfiança. As moças solteiras são execradas como caritós. Aquelas que além de não terem marido são dadas a crises tipo desmaiar, rolar no chão, andar desgrenhadas ou chorar convulsivamente, rapidamente são diagnosticadas pela opinião popular: é falta de homem! E onde essa opinião popular se forma? No balcão da bodega, na praça em frente à Igreja, embaixo da mangueira onde os homens aproveitam a sombra e se reúnem, na feira, no armarinho, nos becos, nas bocas.

E são diagnósticos definitivos, que pregam nas pessoas para o resto da vida. Exemplo disso é Pedro Corninho, Luís Nó Cego, Chico Mão Leve, Tico Bunda Rica. Maria Molambo, Seu Quenquém. E nem o vigário escapa, pois até o padre Frederico, de idade indefinida mas tão velho que ainda usa daquelas batinas negras e chapéu, é chamado padre Formiga porque caminha lentamente, pé ante pé, leva um tempão para subir a ladeira que começa no armarinho de Zeza e acaba na lateral da igreja.

Carece de explicar o porquê da alcunha de Pedro Corninho. Nó Cego é trambiqueiro, vive enrolando as pessoas que caem na sua baba de quiabo. Mão Leve, dizem, é dado a se apossar do alheio. Bunda Rica, cala-te boca, nem vou repassar essas calúnias ditas por aí e que até ofendem a Deus. Mas como é correto hoje falar dando arrodeio, o boato é que ele é dado a praticar a generosidade de emprestar a sua parte traseira, se é que vocês me entendem, para o deleite da meninada do Colégio. Na linguagem antiga, queima a ruela e ninguém tem nada a ver com isso. E os garotos ainda ganham alguns reais pela tabela do dia, sendo o fim do mês, quando Bunda Rica recebe pagamento, o tempo que a meninada o acompanha para os lugares todos.

Maria Molambo é dita molambo por causa que dá a qualquer um, assídua das moitas, dos matos, da beira do rio desde mocinha.  Já Seu Quenquém é baixinho, calado, sem brilho, mas tem três mulheres, mantidas todas sem que ele deixe faltar nada, isso com a magra aposentadoria que recebe. Passa na casa de uma na segunda e terça-feira; quarta e quinta com a mais novinha e fogosa; sexta e sábado é com a titular, a de papel passado em cartório. No domingo ele repousa, que ninguém é de ferro e até o Criador tirou um dia para repousar. Aí, por causa de um Quenquém que tinha na televisão e comia todas, não deu outra, ficou Seu Quenquém. Conto isso para vocês terem uma ideia de como essas coisas começam. Ninguém nunca sabe quem de onde parte, mas se espalha ligeiro feito água de rio que transborda no inverno. 

Foi assim também com Bakunin, isso é nome que se batize um cristão? Claro que um nome desses não ia se manter e desde pirralho, vizinhos, parentes e os meninos da escola passaram a chamá-lo Manga-Rosa, branquinho e corado que ele era. Depois simplesmente virou Manguinha. Quieto, esquivo, sentava na última fila de bancos para assistir a aula. No recreio sumia pelos cantos. Não jogava bola com os colegas nem brincava de tica, garrafão, soldado e ladrão. Só não era completamente isolado porque tinha notas boas e alguns o procuravam em busca de ajuda para fazer as tarefas. 

Não se sabe ao certo quando ou porque começaram a falar essa história de perseguição de gatos. Uma senhora, dona Dorinha, respeitada na vila, diz pra quem quiser ouvir, que o menino botava comida no fundo do quintal de casa para atrair os bichanos. Aí praticava pequenas maldades. Jogava pedras, passava pimenta no fiofó dos bichinhos, e até botar fogo neles tentava, coisa de espírito ruim apartado de Deus.

Aliás, ninguém pode acusa-lo de falta de formação religiosa. Os pais o levaram desde cedo para as missas das manhãs do domingo, mesmo tendo que caminhar bastante até a Igreja. Mas vocês acham que o menino prestava atenção nas ladainhas, no sermão do padre Formiga? Ora dormia, ora olhava para os desenhos do teto, para as capelas laterais, ou procurava ver a rua através das janelas da casa do Senhor.

Gostava mesmo era de examinar com atenção a imagem de Nosso Senhor Jesus Cristo, os espinhos cravados na testa, o sangue escorrendo pelo corpo, as chagas. Deus me perdoe, mas falam que não olhava piedosamente, mas sim, escondia um certo prazer com aquelas cenas. será que esses relatos tem cabimento ou serão as tais lendas urbanas?  

A morte de seus pais o atingiu aos 17 anos. Coisa trágica, que está na memória de todos da vila. Não se sabe bem o que aconteceu, mas no final de uma manhã de dezembro, ao voltar para casa vindo da escola, Manguinha deparou-se com os corpos do casal estendidos na cama, em um sono que não acabava mais. Correu, pediu ajuda, mas em vão. Os curiosos que acorreram apenas constataram a morte dos dois.

Alguém não estranhou aquilo, o duplo óbito, sem luta ou roubo, sem agressões? Perguntado, Manguinha não pôde ajudar pois não sabia nada nem percebera coisa alguma diferente do trivial. Em um lugar como aquele, longe de Deus e do mundo, a coisa foi resolvida fácil. O cabo Neemias liberou os corpos, disse que a causa da morte era “indefinida” e o enterro duplo se fez sem mais delongas. Vocês querem o quê? Se nem na capital há equipamento para investigar coisas do tipo impressões digitais, luminol, ou laboratórios para pesquisas decente, imaginem ali, em Cachoeira do Mato. Prevalecia o olho do cabo Neemias, cabo velho e experiente. Se ele disse causa indefinida, indefinida ficou sendo.   

Manguinha continuou morando na casa dos pais. Arranjou um emprego– ou arranjaram para ele por pena da sua situação de órfão. Por conta do trabalho saia cedo, no primeiro ônibus da manhã e voltava apenas de tardezinha. As pessoas respeitaram a sua dor e não foi difícil acatar o seu recolhimento.  

Conheci Manga Rosa, ou melhor, Manguinha, anos depois desses acontecidos, ele já homem feito, amadurecido.  Fui morar ali, longe da cidade grande, por opção. Com o pouco dinheiro que me coube da aposentadoria comprei uma casa com vasto quintal e ali plantei frutas, fiz uma horta, passei a criar galinhas e além do mais havia levado meus três cachorros barulhentos, Sanfona, Zabumba e Pandeiro. Feras, os três, suficientes para manter eventuais ladrões ou curiosos longe do meu quintal e das frutas. Dos três, Zabumba era o mais feroz. Longe dos engarrafamentos, da violência da cidade e dos chatos, me dei por feliz.  

Na bodega, uma tarde, me apontaram Manguinha que passava rua acima, andando devagar. - Aquele é o Caçador. Não me pareceu nada demais e perguntei, feito besta, que tipo de caça dava por ali. Os caras riram, olharam uns para os outros, e disseram: - Aquele ali é caçador de gatos...!

Pensei que Manguinha era tipo um prestador de serviços livrando a cidade de uma praga de felinos e me dei por achado. Depois vim saber que não era bem assim. Juntando um pedaço de conversa aqui, outro ali, fui emendando as peças. O que havia era uma conversa que Manguinha matava gatos que lhe ficassem ao alcance das mãos ou pulassem inadvertidamente para o seu quintal. Segundo esses rumores, servia de todo tipo e raça: branco, preto, rajado, tigrado, marrom, desbotado, laranja, de rabo grosso ou fino. Grande e gordo como Garfield ou pequeno e magro feito o Manda-Chuva. Gato de rua, vira-lata, ou gatos caseiros que cismassem de dar um bordejo pelos telhados para namoros ao luar.

Como fazia isso, era coisa ignorada. Houvesse apostas a opção mais cotada seria a do uso de veneno de ratos, o chumbinho. O fato é que os moradores do lugar ameaçavam os filhos mal comportados: - Obedeçam ou chamo o mata-gatos! Vá dormir, que o mata-gatos vem aí. E coisas do tipo.  

Manga-rosa morreu como viveu: sozinho e discretamente. O homem do leite estranhou as duas garrafas acumuladas do fim de semana e chamou por ele. Intrigado com o silêncio foi entrando na casa. Achou esquisita a limpeza, a arrumação da sala e cozinha, as coisas em seus devidos lugares. Bakunin, Manga-rosa, o Manguinha, estava deitado ao comprido em sua cama, nem um fio de cabelo em desalinho. Parecia dormir. Vestia pijamas daqueles antigos, de listras verticais. Sobre o criado-mudo um livro, remédios para pressão alta, e o par de óculos.

Aí os gatos começaram a reaparecer aos poucos, saindo de debaixo da cama, entrando no quintal, penetrando pela cozinha, pulando janelas, invadindo a sala e quartos. Primeiro um ou dois. Logo eram um grupo e se multiplicavam. De onde vinham? A equipe que veio recolher o corpo morto teve dificuldades de entrar na casa e realizar o seu trabalho. Os gatos subiam na cama e se metiam entre as pernas dos funcionários da prefeitura que recolhiam os restos mortais de Manga-rosa.  

Quem viu não esquece. Os gatos acompanharam o féretro, de resto seguido por poucas pessoas. A maior parte atraída pela esquisitice daquilo tudo. À medida que o grupo percorria as ruas estreitas a caminho do pequeno cemitério, mais e mais bichanos se aproximavam e pior: na hora da urna ser colocada na cova teve início um arrepiante coral de miados. Soava como choros, lamentos, gemidos. O padre jogou água benta, fez esconjuros, e frente a inutilidade daquilo acelerou o sepultamento e saiu dali meio que corrido.  

Você vai acreditar no que estou contando? Nos dias que se seguiram os gatos foram sumindo, abandonando o cemitério e indo sabe-se lá para onde, desaparecendo nos becos e vielas, embiocando na capoeira. Nesse interim alguém teve a ideia de escavar o quintal da casa de Manguinha. Besteira. A escavação não mostrou nada. Eu, de minha parte, vazei. Vendi a casa no prejuízo e arredei dali buscando ares mais ameno.

Levei meus cães, Sanfona, Zabumba e Pandeiro. E carreguei comigo, além dos livros e discos, uma aversão doentia, reconheço, aos gatos. Deles quero distância. Me arrepio ao ouvir miados, pois repercutem lá no fundo da minha cabeça como se voltasse àquela tarde fria entre túmulos, pessoas e gatos, no cemitério de Cachoeira do Mato e ali tornasse a ver o Manguinha ser descido ao túmulo com os bichos se recusando a largar o caixão, andando por cima, miando, miando, miando. Cruz, credo, quero esquecer. Tá repreendido para sempre! O que ninguém imaginou é que eles se despediam, na verdade, do seu amigo e protetor.  

Eu já estava longe dali quando um amigo me pôs ao corrente dos acontecidos. Ao abrirem umas covas para construção de uma nova rua depararam com dezenas de ossadas de gatos. Não foi surpresa para mim. Afinal, era onde eu enterrava os restos dos gatos que Sanfona, Zabumba e Pandeiro faziam de refeição. Mea culpa. Deixei que Bakunin levasse a culpa. Disse no começo, os esquisitões, os diferentes, pagam o preço de não nadarem com a maré. Se há um céu dos gatos acredito que Manga-rosa está por lá, cercado dos seus bichinhos.  

FIM 

Uma resposta para “A FESTA DOS GATOS ”

  1. Carlim disse:

    Ma rapá?🤣🤣🤣