Mictórios, enterros e outros costumes

outubro 8, 2023

Nilo Emerenciano  – Arquiteto e escritor  Fui ao banheiro de uma dessas grandes lojas de material de construção que se instalaram na cidade nos últimos anos e tive uma agradável surpresa.

Nilo Emerenciano  - Arquiteto e escritor 

Fui ao banheiro de uma dessas grandes lojas de material de construção que se instalaram na cidade nos últimos anos e tive uma agradável surpresa. Lá havia um aviso: não ponha papel no mictório. Saí pensando, há quanto tempo não via/ouvia essa palavra, mictório, tão comum na minha infância/adolescência. Era assim que nós pedíamos ao professor, levantando a mão: - Fessô, posso ir ao mictório? Usava-se também casinha. - Preciso ir à casinha, professora. Nada de tia, coisa que surgiu depois. Aliás, fui professor por algum tempo, e quando me chamavam tio eu repreendia: - não sou seu tio, sou seu professor! E mais, ninguém mijava ou urinava, ou ia de número 1 ou 2.  Fazia xixi, coisa mais fofa.  

Quando as coisas não iam bem alguém observava que era a cantiga da perua. Pra quem não sabe, era uma música que dizia “é de pior a pior, a cantiga da perua é uma só”. Ou para humilhar alguém, quando se dizia que a pessoa era “tapada feito cu de boneca”, pois não sabia escrever “um O com uma quenga”. E gente dura na queda já se sabia, era “carne de tetéu”, ou “de pescoço”. No interior ouvi alguém dizer de pessoa cumpridora da palavra que “fulano é como tiro de rifle”. Moça solteirona, claro, havia ficado pra titia. Com problemas de saúde o diagnóstico estava na ponta da língua dos faladores: falta de homem! E das mulheres casadas que ousavam aventuras se dizia que “costuravam pra fora”.  

Pois é, palavras, costumes e expressões que caíram em desuso. Alguém lembra ôlhospa? Ou “morreu galego”? Ou ainda, em lugar de amasso, “sarro”? “Carecou”, ao invés de dançou? Flerte ou paquera, amizade colorida, tudo antes da moda do pegar ou “ficar" com um “crush”. As garotas enchiam um caderno de perguntas e rodavam entre os coleguinhas. Aí vinham perguntas ingênuas para os padrões de hoje. Gostas do flerte? Já beijastes alguém? E algumas perguntas mais diretas e indiscretas. Chamavam a isso "Questionário." A brincadeira da berlinda também se prestava a algumas revelações e gerava incipientes namoricos.  

Uma vez tirei pra dançar uma moça do interior e me surpreendi quando ela reclamou porque eu dançava “seladinho”. - O que é isso? Perguntei, constrangido. Mas fiquei grato, porque até então achava que aquela era a forma certa de dançar.  

O hoje mão-de-vaca já foi avarento, pão-duro, sovina, muquirana. Café com leite era “pingado”, não havia suco, e sim refresco, ponche, laranjada. E nem caipirinha, só a batida de limão. Além de cuba libre, daiquiri, hoje em absoluto desuso. E você sabe que quem bebe Grapette repete? Que Crush não era um namorado e sim um refrigerante de laranja delicioso?

Uma vez vi em um show de Gilberto Gil, no Teatro Alberto Maranhão o contrarregra colocar garrafas de Crush ao lado dele e dos músicos. Comprou na rodoviária, imaginei. Ao pegar a garrafa Gil comentou que a última vez que havia visto Crush casco escuro havia sido no interior da Bahia. Pois bem, a plateia aplaudiu como se ele houvesse falado algo maravilhoso.  

Que Postafen faz crescer a bunda das moças todo mundo sabe, mas que Wakamoto estimula o apetite e alivia a constipação, duvido muito. Duvido também que alguém tenha conhecimento que as pílulas de vida do Dr.Rossi são pequeninas, mas resolvem.  

Você consegue imaginar um defunto estendido em um esquife na sua sala de estar, rodeado de velas e velhas rezadeiras? E ainda ter que servir petiscos e bebidas a noite inteira para os visitantes? Pois era assim que rolavam os velórios, que alguns chamavam “guardar o morto”.

Nada da profissionalização da morte que veio depois, com o defunto vestido, barbeado, maquiado, mais bonito que quando vivo, telão mostrando mensagens dos familiares e amigos. A morte como um evento social em que nem se chora por não ser de bom-tom. Antes havia até alguma discussão entre especialistas em velórios: - O enterro de fulano foi melhor que esse, muito fraquinho, petiscos frios... E também oradores especializados em enterros, bastava passar pra eles o nome do morto e pronto, um discurso saltava imediatamente à beira da sepultura. 

E a refeição com a família em torno da mesa, garotos de camisa (nus da cintura pra cima, nem pensar), sem brincadeiras e muito menos risadinhas, pois a hora do almoço era sagrada? E sem deixar restos no prato pois era cometer um grave pecado. 

Na sala da nossa casa, no alto, uma imagem do Sagrado Coração de Jesus presidia esses momentos. A coisa havia sido pintada de uma forma que os olhos do Cristo me seguiam aonde quer que eu fosse. Acreditem. Testei várias vezes. Acho que até hoje sinto esse olhar me acompanhando a fiscalizar meus mínimos atos.

Vocês não sabem o sucesso que foi, no Cine Rex, em mil novecentos e votes, a exibição do filme espanhol Marcelino Pão e Vinho, história de um garoto criado por doze frades em um mosteiro.  Ele se assusta com uma imagem do Cristo na cruz, mas depois passa a alimentá-lo com pão e vinho surrupiados da cozinha. Pois bem, me identifiquei com o menino Marcelino, e passei a encarar o “meu” Jesus de forma simpática. E amorosa também, não tenham dúvidas. Dessa forma ele passou a ser para mim, mais tarde, modelo e guia. Pelo menos, é o que venho tentando. 

Filme espanhol, Marcelino Pão e Vinho

Uma resposta para “Mictórios, enterros e outros costumes”

  1. Hugmara disse:

    Que texto maravilhoso, me fez voltar meus 14anos com meu questionário na escola das filhas do amor divino em Assu. A noite me reunia com as meninas na a calçada para lermos as respostas e fazer aquele julgamento (rs).
    A grapete que repetimos aqui em casa.
    Dançar coladinho a música lenta, era sinal certo de quê o rapaz ia pedir em namoro.
    Meu pai foi velado em casa e não existe coisa mais grotesca pra uma criança de 12anos, passei todos os dias a lembrar do caixão dele na sala, nunca mais nos sentamos lá.
    A televisão foi pra cozinha e a casa ficou assombrada.
    Que memórias você me e fez recordar, obrigada querido amigo Nilo❤️