João Maria de Lima. É mipibuense, professor, Conselheiro Estadual de Educação e atual diretor da Escola da Assembleia.
“Na escuridão o teu olhar me iluminava
e minha estrela-guia era o teu riso.
Coisas do passado
são alegres quando lembram
novamente as pessoas que se amam.”
Flávio Magalhães Mendes (Roupa Nova)
A saudade é um sentimento, paradoxalmente, cheio de ausência. Temos saudade porque a pessoa amada está ausente. Essa falta, esse vazio é um buraco na alma que se abre quando um pedaço nos é arrancado. Nesse buraco, mora a memória de quem amamos, tivemos e perdemos. Por isso, a saudade é a presença da ausência.
No meu caso, falo de amor materno; ou melhor, duplamente materno. A minha maior saudade vem do triste dia 6 de setembro de 2005, quando deixei de sentir os braços quentes de minha avó Luzia. Depois desse dia, quero voltar no tempo, quero ir aos lugares a que já fui e que não posso mais. Só os tenho na alma.
A saudade do carinho de minha vó Luzia é facilmente explicada. Ela foi minha companheira de boas lembranças, mesmo sem ter sido aquela avó que vivia para fazer os gostos e defender as astúcias do neto. Sim, falo no singular porque fui o primeiro e único neto dela por 8 anos. Foi ela quem me deu o peito para alimentar-me na impossibilidade de minha mãe (vovó Luzia tinha um filho de 1 ano quando eu nasci).
Esse gesto de amamentar um filho que não veio de você é tão nobre que chamamos quem o faz de mãe (ou ama) de leite. Ela foi testemunha ocular da aurora da minha vida e da minha adolescência. Só saí de baixo de suas asas com dezessete anos. Chega uma hora em que o passarinho precisa deixar o ninho.
Então, mais que um neto, eu também fui filho, o mais novo. Aquele a quem ela se agarrava para passar-lhe o frio e a quem fez questão de dar colo até seus últimos dias.
O amor de uma avó deveria ser um decreto universal dos direitos de qualquer criança. Do mesmo jeito, o amor à avó deveria sê-lo. Amor de avó éalgo tão divino que só entendemos quando crescemos, porque tal amor é puro e inocente, como são as crianças. Está lá em Provérbios 17:6: “Os filhos dos filhos são uma coroa para os idosos, e os pais são o orgulho dos seus filhos”.
Dona Luzia teve uma vida muito dura, antes de se casar com meu avô Esmeraldo e depois da morte dele. Enfrentou a viuvez com muitas dificuldades financeiras, mas com muita fibra e disposição para trabalhar. Fê-lo, arduamente, em plantação de batatas e nas lidas domésticas, em sítios, na enxada e em tantos outros serviços braçais. Isso tudo, aliado às agruras da infância e da juventude, tornou-lhe uma mulher de saúde frágil, apesar de nunca ter aparentando isso para os filhos, a quem ela sempre conduziu pela estrada da virtude, desde os primeiros passos da vida, tendo certeza de que eles nunca se afastariam.
O escritor português Almeida Garret disse que “a mãe é a mais bela obra de Deus” e Carlos Drummond de Andrade chegou a questionar a autoridade divina, por causa das mães:
Por que Deus permite
Que as mães vão-se embora?
Mãe não tem limite
É tempo sem hora
Luz que não apaga
Quando sopra o vento
E chuva desaba
Veludo escondido
Na pele enrugada Água pura, ar puro
Puro pensamento
Morrer acontece
Com o que é breve e passa
Sem deixar vestígio
Mãe, na sua graça
É eternidade
Por que Deus se lembra
- Mistério profundo -
De tirá-la um dia?
Fosse eu rei do mundo
Baixava uma lei:
Mãe não morre nunca
Mãe ficará sempre
Junto de seu filho
E ele, velho embora
Será pequenino
Feito grão de milho
Meus anos de convivência diária com vovó Luzia são inesquecíveis. O acordar cedo, fogão feito com lenhas, a tradição pernambucana de comer massa de fubá mais endurecida ( o que ela chamava de “quarenta”), a charque no feijão (o que não podia faltar), bolinho de feijão amassado na mão dela (ainda não comi outro igual), deitar no chão frio com ela após o almoço, na porta da sala. Ali estava decretado: não entrava ninguém para não atrapalhar nossa preciosa sesta. Antes do jantar, tomar uma xícara grande de café, ouvindo o rádio, esperando a Ave, Maria, na voz de Luiz Gonzaga, para só depois tomar a sopa. Tudo isso acontecia em um cenário de muito amor recíproco, do raiar do dia ao apagar do candeeiro.
Fui seu confidente fiel e guardador de segredos. Com menos de sete anos, eu já escrevia suas correspondências, cujos destinatários eram os irmãos em Condado, interior de Pernambuco. A mãe analfabeta que fala pela escrita de um filho tem nele toda a confiança. Deste jeito era nossa relação: cheia de cumplicidades, de proteção e carinho, assim como é amor das avós com os netos.
O amor de avó e neto é daqueles que não existem razões, como bem disse Drummond. É dado de graça, semeado no vento. Contudo, para mim, a melhor definição de amor de avó é uma que está em Coríntios: 1:4: “O amor é paciente, o amor é bondoso. Não inveja, não se vangloria, não se orgulha”.
Durante muito tempo, lamentei a ausência de minha vó, mas achei na poesia um alento; principalmente, depois que li o poema Ausência, de Drummond (de novo, ele), que dialoga com minha alma:
Por muito tempo achei que ausência é falta. E lastimava, ignorante, a falta. Hoje não a lastimo. Não há falta na ausência. A ausência é um estar em mim. E sinto-a, branca, tão pegada, aconhegada nos meus braços, que rio e danço e invento exclamações alegres, porque a ausência, essa ausência assimilada, ninguém a rouba de mim.
Ninguém rouba de mim a ausência de Dona Luzia porque ela já está assimilada em mim. O que trago dela não está destinado a desaparecer com a passagem do tempo. Cecília Meireles disse: “É nisto que se resume o sofrimento: cai a flor, - e deixa o perfume no vento”. Apesar disso, hoje, entendo melhor a transitoriedade da vida, a regularidade dos ciclos da natureza. Sem a morte, a vida não existiria. Uma canção não poderia ser cantada sem a palavra que a encerra. Consolo-me com uma frase de Exupéry:“Aqueles que passam por nós, não vão sós, não nos deixam sós. Deixam um pouco de si, levam um pouco de nós.”
Perfeito. Só amor!