VELHAS RADIOLAS E CANÇÕES
Nilo Emerenciano – Arquiteto e escritor O meu amigo Gutenberg Costa tem um interesse especial pelos hábitos do povo e suas consequentes manifestações.

Nilo Emerenciano - Arquiteto e escritor
O meu amigo Gutenberg Costa tem um interesse especial pelos hábitos do povo e suas consequentes manifestações. Já escreveu sobre carnaval, tipos da cidade, bares e restaurantes, feiras, aspectos do seu bairro amado, o Alecrim, e seus olhos brilham quando o assunto são os velhos cabarés e a boemia da Natal dos tempos idos. Assim, quando soube que eu havia morado vizinho à única oficina de radiolas de fichas da cidade, hoje americanalhadas para jukebox, disparou: - Escreva sobre tudo isso. Serei besta de não obedecer?

Pois então. Nosso vizinho era um agente da polícia civil. Sério, discreto, educado, chamado Augusto. Pai de sete filhos, seis meninas e um menino, meus companheiros de brincadeiras. Brincávamos de berlinda, anel, pão quente, tica-cola, bandeirinha, garrafão, estátua, esconde-esconde e tantas coisas mais. Quem nunca brincou de bom barquinho, desculpem, mas não sabe o que perdeu.
“Licença, meu bom barquinho
Licença para passar
Eu tenho muitos filhinhos
Não posso mais demorar.”
A brincadeira era no meio da rua que na época não era a terra de ninguém de hoje em dia e a garotada brincava até a mãe chamar de volta.
A casa de “seu” Augusto era na esquina, e nos fundos, com entrada pela outra rua, havia uma oficina. Ali era feita a manutenção dessas radiolas que eram instaladas nos bares e cabarés da Ribeira. O responsável era Moacir, pai de uma garota que tocava sanfona e tinha grandes cabelos e olhos sonhadores que mexiam com meus pruridos de menino besta. Me deu uma foto com a sanfona sobre os joelhos. Dar fotos, nesse tempo, significava algum tipo estabelecido de link. Vocês não vão acreditar, mas tenho na memória, perfeita, aquela foto de Júlia, seu ar inteligente, seu olhar, seu sorriso.

Mas escrevo sobre radiolas e não velhos amores.
Moacir passava as tardes repetindo as músicas no ato de regular as máquinas. E aí era uma festa para meus ouvidos ávidos. Tangos e bolerões. Havia um disco de Nelson Gonçalves que rolava a tarde inteira. De tanto ouvir aprendi aquelas letras dramáticas. Minhas preferidas eram Vermelho 27 que cantava as desventuras de um jogo de roleta, Esta noite me embriago, Hoje quem paga sou eu, e a homenagem a Carlos Gardel feita por David Nasser e Herivelto Martins.

Não conheço melhor descrição de um cenário e clima feito em tão poucas palavras: “Tango, bandoneon, uma guitarra que chora/ Num ritmo de amor desesperado/ Um cabaré que fecha suas portas/Uma rua de amor e de pecado/ Um guarda que vigia numa esquina/ Um casal que anda a procura de um hotel/ Um resto de melodia/ Um assobio, uma saudade imortal/ Carlos Gardel.” A capa do disco mostrava um homem mal encarado acendendo um cigarro em primeiro plano e, ao fundo, uma mulher com um ar de desespero sentada a uma mesa.
Mas nem só de tangos viviam as radiolas e os cabarés. Havia um cantor chamado Silvinho que pontificava nos bares & beréus. Cantava coisas mórbidas como por exemplo “quando eu morrer/ no outro mundo esperarei por ti”. Ou ainda: “Ingrata, quando eu morrer/na minha campa vais por/uma letra em cada canto/a-m-o-r, amor.” É mole? E Orlando Dias, que cantava com um lenço na mão, ajoelhava-se no palco, chorava e implorava: “perdoa-me, pelo bem que te quero/pelo mal que te faço.”

Nos tempos antigos algumas músicas intercalavam uma declamação piegas, e em Perdoa-me entrava uma voz feminina que dizia “perdoar-te porquê?” Agnaldo Timóteo despontava. Waldick Soriano, que vi cantar no palco de um circo com chapéu e óculos enormes, já era rei nos cabarés. “Tortura de amor”, que me perdoem aqueles que torcem o nariz, é um clássico. Odair José também reinava dizendo para as meninas “perdidas” e as fazendo sonhar: “Eu vou tirar você deste lugar/ e não interessa o que os outros vão pensar.”

Altemar Dutra se afirmava sentimental demais. César Sampaio cantou as meninas que fazem ponto na zona portuária. “Ela espera e não desespera na beira do cais/ Ela quer quem vier, quem trouxer, quem der mais/(...) Como vai, pergunta o pai à filha querida/ Ele quer saber como é que está sua vida/ Ela diz que é muito feliz na vida que traz/ Que trabalha como secretária da beira do cais.”
Nos mudamos de casa, de rua, de bairro, de vida, e as velhas radiolas de ficha ficaram para trás. Esses artistas populares passaram a ser chamados bregas e olhados de forma enviesada, apesar de venderem muito mais que os ditos da MPB.

Havia surgido quatro cabeludos no horizonte dos jovens e uns baianos revolucionando a cena musical. Havia também uma ditadura para nos preocupar, os de agora não imaginam o quanto, e as músicas de protesto ocuparam a cena. Os festivais da canção não davam espaço para a música romântica. O advento do amor livre e da pílula anticoncepcional levaram os cabarés à decadência.
Afinal, as meninas passaram a fazer de graça o que antes custava alguns cruzeiros novos. Essa prática trouxe um novo elemento, antes chamado de Casa de Recurso e que agora assumia um papel mais elegante: os motéis.


Essa coisa de clicar velhos arquivos mentais é interessante. Começamos com as radiolas de ficha e vejam onde viemos parar.
Por hoje acho que chega. A saudade bate à porta.