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fevereiro 7, 2021

O QUE EU COSO?

  Nilo Emerenciano – Arquiteto, escritor, articulista    Em tempos de pandemia, reclusão, medicamentos e gestores ineficazes, vacinas que chegam aos poucos e gente morrendo aos montes, a gente se põe a lembrar das até bem vindas doenças obrigatórias dos anos da infância.

 

Nilo Emerenciano - Arquiteto, escritor, articulista 

 

Em tempos de pandemia, reclusão, medicamentos e gestores ineficazes, vacinas que chegam aos poucos e gente morrendo aos montes, a gente se põe a lembrar das até bem vindas doenças obrigatórias dos anos da infância. Digo obrigatórias porque todo mundo tinha. Caxumba, sarampo, rubéola, catapora, além das gripes de todo ano. E bem vindas porque era muito bom adoecer. Doentes nós tínhamos direito a algumas mordomias. Não ir a aula, por exemplo. Passar o dia na cama sendo paparicado, lendo revistas, comendo biscoitos Maria e tomando guaraná. O que havia de mal era ficar sob o tratamento e vigilância da minha mãe. Hoje procuro imaginar como foi que sobrevivemos, eu e meu irmão, a esse zelo.  

Porque minha mãe tinha um arsenal de técnicas aprendidas não sei onde. Meu irmão era asmático, e para asma as mezinhas eram as mais variadas e suspeitas. Tão suspeitas que o paciente não podia saber o que estava ingerindo. Só sei que dona Penha torrava aqueles troços todos, pilava, misturava com algum líquido e forçava o doente a tomar aquela beberagem negra. Não curou a asma do meu irmão, mas deve ter dado alguma resistência especial aos seus intestinos, tanto que hoje, tantos anos passados, ele bebe todas e come de tudo mantendo as taxas dentro da normalidade.  

Para sarampo, mamãe sapecava milho embaixo da cama. Para pruridos anais, nada como um dente de alho enfiado no próprio. Para febre ela tinha uma técnica infalível: o suadouro. Vestia-nos com roupas grossas, cobria com dois ou três cobertores, fechava as janelas e nos fazia suar até ensopar todas aquelas roupas. Acho que era a teoria do quanto pior melhor. Hoje sei, muitos anos e quatro filhos depois, que se faz exatamente o contrário: é necessário baixar a temperatura a todo custo.  

Os garotos da minha geração quando se machucavam havia uma terapia hoje impensável: a garapinha, ou seja, água com açúcar. Quantas diabetes e cáries não tiveram aí a sua origem?  

Havia uma alternativa para os casos mais graves, a rezadeira. Dona Tetéra (morreu aos 103 anos) usava um raminho ou, quando o problema era um trauma muscular, um novelo, agulha e linha. Ela enfiava a agulha no novelo e perguntava “- O que é que eu coso”? O paciente obediente respondia: “osso quebrado, carne ofendida e nervo torto”. E ela completava – “Isso mesmo eu coso” e seguia cosendo o machucado...  

Foto Ilustrativa

Havia também os remédios da moda. Wakamoto era para abrir o apetite e dar vigor. Biotônico Fontoura. Leite de Magnésio. Óleo de fígado de bacalhau. Pílulas de Vida Dr. Ross (pequeninas, mas resolvem).  Um dia o Postafen chegou com estardalhaço para engordar as garotas. E nós cantávamos: já chegou, já chegou, Postafen nas farmácias/e as bundas das moças/já não cabem nas calças...  

Atrás da porta do quarto das casas da minha infância havia uma vasilha de ágata branca, munida de uma sombria mangueira terminada em bico. Hoje sei que esse kit é chamado clister e é usado para fazer lavagem intestinal. Para nós, crianças, era instrumento de tortura. Aquela mangueira era introduzida ali, sim, bem no local em que Bolsonaro pretende enfiar o leite condensado nos jornalistas. A água morna invadia os intestinos, circulava as vísceras, limpava tudo e depois de dois ou três minutos corríamos desesperados para o banheiro, pois a evacuação acontecia violenta, arrasadora, humilhante.  

Pois é. Sobrevivi a tudo isso. Garapa, clister, lambedores, suadouros, chás de todo tipo, e até às curandeiras e suas rezas. E então me pergunto, valeu a pena? Aí me lembro do guaraná, dos biscoitos e das maçãs, das revistas, dos cuidados da minha mãe sempre solícita e bem intencionada, e não tenho dúvidas: valeu sim. Passaria por tudo novamente. Apenas me poupem, por favor, do clister de minha mãe (e das intenções cruéis de Bolsonaro). Esses tenham dó, ninguém merece.  

Natal/RN  

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6 respostas para “O QUE EU COSO?”

  1. Terezinha Tomaz disse:

    As mães sabem de tudo!!

  2. Carlinhos de Bi disse:

    Muito bom, belo texto. Passa um filme em nossas mentes.

  3. André Cardoso disse:

    E Bolsonaro, também!!

  4. Francisca Alves disse:

    Excelente escritura!!!!
    Parabéns Nilo Emerenciano.

  5. Ariadna Carvalho disse:

    Kkk tomei chá de milho chá de sabugueiro ,guaraná antártica biscoito Maria, maçã rsrsrs postafen tomei muito com vitamina rsrsrs mas não conseguia uma grama rsrsrs só depois do meus 50 anos que consegui ganhas uns quilinhos, lutando agora para sobreviver as intenções de Bolsonaro rrsrsrs mas já cheguei até aqui com certeza vou tbm sobre viver tbm a esse tempo,que vai fazer parte da minha história 👏👏👏😘❤️

  6. Regina Ramos disse:

    Nilo, adorei!
    Passou um filme na minha cabeça.
    Parabéns!