De mentiras e mentirosos clássicos que conheci…
Gutenberg Costa – Escritor, pesquisador e folclorista.

Gutenberg Costa – Escritor, pesquisador e folclorista.
As crianças quando mentem, imediatamente se retratam, como minha netinha de oito anos: “É de mentirinha, vô”. Já os idosos, mesmo contando verdades, algumas vezes são confundidos pelos mais jovens como contadores de mentiras, principalmente, quando falam sobre seus passados. Foi o meu caso em uma palestra a um grupo de estudantes de uma escola pública da Zona Norte de Natal. Uma jovem, sentada bem na frente, não acreditou que eu tinha praticamente nascido na feira do Alecrim, oriundo de uma família pobre. Para a juventude que não lê, todo escritor nasceu em família importante e rica...
Existem os mentirosos clássicos e os maldosos. A medicina afirma que é doença mentir desenfreadamente, mas papai, seu Geraldo Costa, já dizia que era a mais pura safadeza. Convivi com vários mentirosos e mentirosas. Um colega de infância, em Natal, mentia até o seu endereço aos desconhecidos. Dizia morar em Tirol, mas morava nas Quintas. Dizia ser filho de Juiz, mas seu pai nem de futebol o era. As suas namoradas ouviam as maiores mentiras do mundo. Uma minha vizinha, também em Natal, mentia até seu nome. Dizia a todo mundo que se chamava ‘Sílvia’ e um dia o carteiro lhe trouxe uma correspondência cujo nome era na verdade ‘Francisca’. E essa dizia ser carioca e até chiava no falar feito chaleira no fogão. Também dizia ser de família muito rica, segundo ela, porém nada comprovado.

No meu antigo trabalho, tinha um colega, que ninguém acreditava em nada do que ele nos contava. Segundo ele, só não havia sido testemunha do crime de Caim. O mentiroso não tem santo padroeiro, mas até Pedro, o qual não era de ferro, chegou a negar três vezes, que era amigo de Jesus Cristo. Dizem que o mentiroso fica gaguejando e nervoso quando conta suas lorotas. Também teme que, no meio de suas contações, o galo cante. Até o personagem Pinóquio, com aquele narigão, ficou sendo o seu mascote representativo. Dona Estela já me alertava: “Menino, se mentir o nariz vai crescer, aparecerá verrugas nos dedos e manchas brancas nas unhas!”.
Os mentirosos clássicos contam as histórias mais fantasiosas do mundo com uma tremenda seriedade no falar e gesticular. Não riem e sempre pedem a confirmação a alguém como testemunha do ocorrido contado. Os leitores da minha geração, acho que ainda se lembram do famoso casal de personagem do humorista Chico Anísio, ‘seu’ Pantaleão e ‘dona’ Terta. Os dois jurando de pés juntos, que tudo contado era a mais pura verdade.

Há até um dia dedicado mundialmente a mentira existe: 1º de abril. Minha mãe só me perdoava nesse dia, pois eu dava o recado falso de que a vizinha a estava chamando. Ela ria, mas no dia seguinte a conversa mudava de tom. No antigo barzinho de nome ‘Caixinha de Fósforo’, da Cidade Alta em Natal, tinha uma placa que nos alertava assim: “Aqui se reúnem caçadores, pescadores e outros mentirosos”. Quando a mentira é muito grande, logo é chamada de - ‘mentira cabeluda’. Temos inúmeros ditos populares sobre a mentira, mas o mais conhecido é este: “A mentira tem pernas curtas”. Minha mãe, contava-me que um grande mentiroso de sua cidade. Pendências/RN, teria morrido afogado no rio, porque ninguém de lá teria acreditado em seus suplicantes pedidos de socorro. Todos os que estavam ao seu redor pensavam se tratar de mais uma de suas costumeiras lorotas...
E eu já fui até jurado em um Concurso de Mentirosos, em Natal. O vencedor chegou muito sério ao palco e, pedindo desculpas, disse-nos que havia atrasado devido a Guerra do Paraguai com o Brasil. Não precisou contar mais nada. Dizem que, em guerra, a mentira é como terra. Mas, a mentira criativa e bem contada até diverte aos ouvintes. Em minhas andanças ouvi muitas em portas de bodegas, farmácias e barbearias. Só não vamos confundir com as lorotas eleitorais de parte de nossos políticos brasileiros: o dinheiro na cueca, na mala... e, como se sabe, são milhares as anedotas relacionadas aos mentirosos.
A arte de mentir do ‘clássico mentiroso’ já deveria ser estudada com mais seriedade. Ele ou ela não ri e nem pisca o olho. Jura que o que está nos contando é a mais pura verdade e, inclusive, pede a confirmação de alguém que está bem próximo. Usa sempre o sete. Foram sete dias, sete marrecos que morreram de um só tiro. O peixe que eu pesquei tinha sete quilos. A cobra tinha sete metros. Desde menino que eu escuto dizer que o numeral sete é a conta do mentiroso.

Conheci e fui amigo do maior mentiroso da cidade de Extremoz/RN. Era o saudoso tipo popular seu ‘Chico do Ouro’. Exímio contador de histórias fantásticas e engraçadas. Um tipo baixo, falante, risonho, católico fervoroso, um pouco forte, já de idade, com cabelos grisalhos e negro. Trabalhador rural, pescador, enfim, só não fazia chover, mas bem que preparava o tempo. Pai de inúmeros filhos e filhas. Casado com dona Nazaré, que está viva e a qual sempre estava ao seu lado sem poder rir das histórias contadas por seu marido: “Taí Nazaré que é minha testemunha. Ela não me deixaria mentir, viu, seu moço!”. E os ouvintes que não conheciam o velho Chico, logo acreditavam que a cobra que ele vira tinha a grossura de um tronco de uma mangueira e o comprimento de uns sete coqueiros. Seu Chico, bem sério e gesticulador, dava saltos e fazia mungangas de fazer inveja aos antigos comediantes da TV Tupi do meu tempo. Para se ter uma ideia, certo dia o ouvi contar a um turista que seu cão vira lata, já bem velhinho, tinha sido um presente do mestre que construíra a primeira igreja de Extremoz, isso no tempo dos índios.

Seu Chico não mentia por maldade ou para causar mal a ninguém. Era apenas uma arte para se divertir na saída do ouvinte. Nada de risadas por perto dos amigos e familiares em sua volta, muito menos eu, que tinha vontade de dar boas gargalhadas. Acreditem ou não, mas, segundo Seu Chico, depois de ser picado por uma jararaca venenosa no dedão do pé esquerdo, quase estando cego, foi a uma bodega e pediu no balcão um copo de cachaça, três colheres de sal e sete pingos de limão: “Tomei o copo cheio e voltei pra casa bonzinho. Se alguém duvidar, eu mostro o couro da dita cobra que está lá em casa e a marca da picada no meu dedão, viu?!”. E ai de quem duvidasse das suas histórias: “Homem da minha idade não mente, viu! Táqui Nazaré de prova de que eu estou contando. Eu nunca gostei de mentiras, só falo a verdade”.

Ele contava as lendas de Extremoz como se tivessem ocorrido em seu tempo de menino: “Pode ficar certo que eu vi. Eu estava lá agarrado na mão de meu avô”. Quem era doido de duvidar da seriedade de um homem respeitado na cidade, pai de filhos e filhas? Quando soube do encantamento do velho amigo que morava entre a igreja católica e a antiquíssima e bela lagoa, eu lhe dediquei uma crônica publicada no finado ‘Jornal De Hoje’ com o título ‘O Ouro de Extremoz’. Esses tipos populares são verdadeiramente o ouro das cidades. Ficam eternizados pelos cronistas e observadores visitantes. Marcam histórias, se não em livros, mas ficam vivos e vivas na boca do povo. Ninguém quer saber dos endinheirados e políticos que em nada fizeram ou deixaram rastros engraçados e curiosos na memória popular. Quando chego em uma pequena comunidade, a primeira pergunta é se ali tem alguém verdadeiramente rico em histórias! Onde estão seus contadores e contadoras de histórias? As suas rezadeiras e curandeiros? Seus artistas populares?

“Não sei, só sei que foi assim”.
E do resto e suas desgraceiras, com todo o meu respeito, nem quero saber, nem guardo em minha mala para volta, muito menos anoto na minha surrada agenda para depois contar em minhas andanças. Tenho a mais absoluta certeza que os ditos políticos e ricaços ficavam com inveja quando esses mestres eram procurados com toda a atenção e carinho por viajantes ilustres, como: Mário de Andrade, Câmara Cascudo, Veríssimo de Melo, Ariano Suassuna, Deífilo Gurgel, entre outros. O ouro, das cidades tenham certeza, ainda está com eles e elas!
Morada São Saruê, Nísia Floresta/RN

Que maravilha 😍