RITA LEE NA VEIA
Nilo Emerenciano – Arquiteto e escritor Após a morte de Rita Lee era normal que chovessem os especiais de TV, entrevistas, opiniões de artistas diversos, e que as redes sociais fossem inundadas por vídeos antigos da musa do rock brasileiro, inclusive os da época dos Mutantes.
Nilo Emerenciano - Arquiteto e escritor
Após a morte de Rita Lee era normal que chovessem os especiais de TV, entrevistas, opiniões de artistas diversos, e que as redes sociais fossem inundadas por vídeos antigos da musa do rock brasileiro, inclusive os da época dos Mutantes.
Mais que merecido.
Rita é tão grande, sua história tão rica, sua importância e influência sobre uma geração inteira tão tamanho, que nem cabe nessas mal traçadas linhas.
Rita surge nos anos sessenta, jovem, linda, ousada, meio louca, fora e acima da manada como uma vaca profana. As meninas de então eram todas comportadinhas: Celly Campello, Quarteto em Cy, Trio Ternura, Evinha, Nara Leão, por aí. Algumas se apresentavam usando um banquinho e um violão.
Rita surge empunhando pratos ou um theremin, instrumento eletrônico que se toca sem contato algum, como mágica; foi assim em Panis et Circenses ou em 2001, vestida de noiva, imaginem. Foi, pelo menos pra mim, que comprei todos os discos dos Mutantes, uma quebra absoluta de paradigmas. Ainda não havia para mim Pink Floyd, Led Zeppelin, ou mesmo o rebolado atrevido de Ney Mato Grosso nos Secos e Molhados.
Claro que Rita contou com o auxílio luxuoso de uma geração genial. Caetano, Gil, Tom Zé, Rogério Duprat, e de um mundo em ebulição à sua volta. Mas só artistas (os bons) dispõem dessa antena capaz de detectar o movimento sutil das mudanças e transformar tudo isso em arte. E geniais são os que dão um passo à frente, que ousam no palco e na vida.
Em A Voz do Morro, Guimarães Rosa, outro que esteve sempre muitos passos à frente do seu tempo, descreve a trajetória de um recado - na verdade, um aviso - que vem de debaixo do barro do chão e é captado por pessoas especiais. O recado vai passando sempre por esses superdotados, até que a mensagem é finalmente decodificada por um artista popular e chega ao seu destinatário. O artista é isso, um decodificador. As coisas estão por aí, no ar, e apenas essas antenas vivas são capazes de senti-las e traduzi-las para nós, pessoas comuns.
Rita Lee foi/é uma dessas pessoas muito especiais. Lendo a sua autobiografia a gente percebe seu gênio e sua humanidade. Passando os olhos pela sua carreira a gente se deslumbra.
Preferiu o difícil caminho do Rock‘n’roll, dominado até então pelos machos. Optou pelo humor e deboche, pela crítica sutil, pela resistência bem-humorada, pela acidez divertida e, não vamos esquecer, pela exaltação à sensualidade e ao prazer, a partir do seu encontro com Roberto Carvalho, sua melhor parceria.
Acompanhei sua carreira de longe. Quando da sua saída dos Mutantes me perguntei que tipo de caminho ela iria seguir sem Arnaldo e Sérgio. Vai sumir, acreditei. Qual nada. Eles sumiram, Rita cresceu. E apareceu.
Gravou Meu Bom José. Supergostei, mas era uma Rita diferente, cantando uma balada apenas bonitinha. Logo à frente Rita ressurge, impetuosa. como fala Gilberto Gil: - Éramos jovens sedentos e fogosos.
Momento dramático: Rita foi presa por uso de maconha. Gil também. Eram tempos duros, lembrem-se: Ditadura militar, etc. Esse evento triste gerou um show e um disco chamado "Refestança".
A dupla apresentou-se em Natal, no Palácio dos Esportes. Puro deboche e ironia. Faziam uma limonada do limão amargo que deve ter sido a experiência da prisão. Elis Regina, que boa surpresa, foi uma presença importante. A pimentinha depois gravaria Alô, Alô, Marciano e se apresentariam juntas, além de construírem uma bela amizade. Considerem: mpb e rock juntos, que maravilha.
Ao longo dos anos a Ovelha Negra bonita e gostosa teve canções gravadas por muita gente boa. Compôs para novelas trilhas que foram sucesso absoluto.
Rita Lee rainha. No palco, um deslumbre. Na vida, um exemplo do que se consegue com audácia e coragem. Na carreira uma vitoriosa. Correndo por fora, comendo pelas beiras, como se diz no Nordeste. Dizer o que mais? Comparar Rita Lee às outras grandes mulheres? Com certeza. Às vitoriosas. Maria Callas, Maysa, Dolores Duran, Billie Holiday, Amy Winehouse, As transgressoras. Mas acreditem, fico com Rita Lee.
Naqueles anos maravilhosos gravei uma fita cassete (sabem o que era?) com uma playlist (nem existia essa expressão) trazendo músicas de minha predileção. Abria com Caminhante Noturno. “Pisa o silêncio, caminhante noturno/ Fúria de ter/ nas suas mãos dedos finos de alguém/ A apertar, a beijar/ Vai caminhante/ Antes do dia nascer/ Vai caminhante/ Antes da noite morrer”.
Um compositor, Orestes Dornelles, escreveu: “Quando a coisa fica feia, Rita Lee na veia”. Acertou em cheio. Rita Lee em nossas veias, sempre.
Vivas pra você, Rita Lee. Vai, caminhante. leva nosso amor junto com minha admiração. deixe mais alegre o lugar onde você, com certeza, se encontra agora, quem sabe os Jardins da Babilônia ou Shangri-lá. E cante. E brinque. E seja irreverente como sempre foi. Puxe as barbas de São Pedro, corra junto com o menino Jesus, converse com o bom José, espalhe sua alegria nos confins do Céu. E nos aguarde.
Irreverência,em Rita,era sinônimo de ter vida própria, enxergar claramente o que queria pra si, sem se ligar aos rótulos de uma sociedade tradicionalista. Criatura única, artista excelente