O poeta e o principezinho: as flores e a flor
Rosângela Trajano – Poeta, escritora e filósofa (www.
Rosângela Trajano - Poeta, escritora e filósofa (www.rosangelatrajano.com.br)
À sombra de uma árvore repousa o meu coração de jardineiro. Desdobrei-me em cuidados. … Jean Sartief, em Jardim dos Abismos (2018)
"Foi o tempo que dedicaste à tua rosa que a fez tão importante…" Antoine de Saint Exupéry, O Pequeno Príncipe
“Eu cantarei de amor tão docemente”, anunciou o poeta Luiz Vaz de Camões. Assim cantamos o amor, com a doçura dos nossos corações e a sabedoria do rei Salomão nos seus Cantares.
É sabido que o amor é o mais belo sentimento do mundo, o mais sincero e único, o que cura doenças e faz o inimigo temer. Aquele que nos faz largar qualquer coisa pelo nosso amante. Sendo assim, não poderia ser diferente o cuidado que o poeta Jean Sartief dedica a seu jardim daquele que Saint Exupéry demonstra ter, em seu Pequeno Príncipe, com sua flor. Ambos cuidam porque amam incondicionalmente. Um tem um jardim, o outro tem apenas uma flor. Quem será mais feliz? Existirá felicidade no plural? É possível amar por igual?
A verdade é que o poema “Flores” de Jean Sartief dialoga com a flor do Pequeno Príncipe de forma única e angelical, como se fossem duas crianças a cuidarem de algo precioso que não pode ser perdido, que não pode ser machucado, que não pode desaparecer dos seus olhares cuidadosos, porque quem ama desdobra-se em cuidados num planeta cheio de árvores ou em um planetinha onde há apenas uma flor.
Não importa o lugar. Importa o cuidado. Este que temos perdido ao passar dos anos, com a nossa pressa em estarmos sempre em mil lugares ao mesmo tempo e fazendo um milhão de coisas sem nos darmos conta de quantas pessoas e seres estão precisando de nós, do nosso amor e do nosso afeto.
O poeta brasileiro Jean Sartief se diz um jardineiro à sombra de uma árvore. Lá está o seu coração e, certamente, o seu grande tesouro. Como diz Mateus (6:21), “onde está o teu tesouro, aí está o teu coração.”
O coração de Sartief encontra-se diante do seu jardim, um jardim que fica à sombra de uma árvore, criando uma imagem belíssima em nossos pensamentos e fazendo-nos evocar as ninfas que tanto amam os bosques e os jardins. Assim, é a flor do Pequeno Príncipe, para ele, o tesouro maior.
Todos nós temos um tesouro dentro e fora das nossas almas cheias de sentimentos diversos, que muitas vezes são incompreendidos pelo próximo, mas que nos tornam gigantes quando apresentamos cuidados além do esperado por pessoas egoístas que ainda acreditam o tesouro ser apenas bens materiais.
Um tesouro é tudo aquilo que você guarda nas profundezas da sua alma, num lugar seguro, dentro de um baú trancado a sete chaves para que ninguém tenha acesso, porque só você sabe o valor que ele tem.
Cada pessoa tem um tesouro que pode ser desde uma folhinha velha de um cajueiro até um cálice de ouro. Os tesouros são os mais diversos. Eles se apresentam nos poemas e canções assim como nas histórias infantis, nas quais os piratas de perna de pau combatiam nos mares com outros piratas atrás de tesouros que os enriqueceriam materialmente. Aqui, vale o tesouro que enriquece o afeto, o cuidado, o espírito.
O Pequeno Príncipe necessitava cuidar da sua rosa porque era a única e, mesmo depois de descobrir, quem sabe, o jardim de Jean Sartief, ainda assim não deixou de amá-la nem por um segundo. Há um principezinho que tem apenas uma flor no universo, enquanto há um poeta que tem um jardim inteiro e ambos sabem que devem cuidar dos seus tesouros como quem cuida de si mesmo todos os dias, ou seja, fazendo os mais lindos mimos que se pode esperar de quem nos ama.
É preciso cuidar para não deixar morrer e para não deixar que o tempo nos destrua ou destrua os sentimentos surgidos do quase nada e que viraram tanto dentro da gente.
Na ética do cuidado, os cuidadosos estão sempre vigilantes com aqueles que são cuidados. É preciso ser cauteloso e valente para saber cuidar das coisas frágeis, ou seja, das coisas e das pessoas que, por serem delicadas demais, nos pedem cuidados mais atenciosos.
Quando se tem apenas uma flor no mundo que é tudo, além de amiga, é importante saber cuidar dela para que nenhum bicho ou homem a maltrate. Também é preciso cuidar de um jardim inteiro, porque muitas vezes o tesouro pode ser pesado, imenso, grande por demais, porém, a sua essência exige cuidados que o proteja das pragas, dos insetos, dos pés dos homens ignorantes e daqueles que gostam de arrancar flores só para vê-las morrerem em suas mãos.
Um poeta e um principezinho se encontram quando não importa a quantidade, mas o cuidado que é dedicado ao objeto que ganha espaço nos seus corações sensíveis e meigos.
Vivemos tempos em que poetas estão sendo construídos com a inteligência artificial para fazer amigos, cativar e demonstrar cuidados, mas nunca substituirão o verdadeiro homem, como é o caso do app Replika. Este app é um amigo virtual que pode nos escrever poemas caso peçamos.
O poeta de carne e osso não é programado para dar respostas prontas, mas para estar pronto a amar do seu jeito aqueles que precisam dos seus cuidados, mesmo nos momentos em que ele, o poeta ou o principezinho, também precisam de cuidados. Como se diz o velho ditado: eu esqueço a minha dor para cuidar da tua, amigo.
Nessa vida, em que o tempo é o senhor que diz as ordens de como devemos viver, todo cuidado se faz pouco com as coisas que são importantes para nossas almas.
A flor do Pequeno Príncipe era abusada e o deixava preocupado com as suas esquisitices de se fingir de morta só para deixá-lo preocupado, isso porque temia que ele descobrisse a existência de outras flores. O jardim de Jean acalma o seu coração de jardineiro e suas flores parecem ser tranquilas e não ciumentas, mas, ai dele se deixá-las sozinhas, logo morrerão sem cuidados. Assim são as flores cheias de bonitezas e ao mesmo tempo de uma fragilidade que requer zelo redobrado.
Quem tem apenas um amigo precisa cuidar muito bem dele, pois é o seu único tesouro; não é diferente de quem tem um milhão de amigos, pois também precisa cuidar bem de todos e se desdobrar em cuidados que vão exigir tempo e renúncias muitas vezes para ficar ali do ladinho, sempre fortalecendo os laços e ratificando o seu grande amor.
Se não aprendemos a cuidar bem dos nossos amigos, vai chegar o dia em que todos partirão e ficaremos sozinhos.
Tem gente que gosta de ter um jardim inteiro, assim como Sartief, já o nosso principezinho se contentava com a sua única flor. De qualquer modo, o que importa é a amizade, é o tempo que dedicamos a essas criaturas tão especiais para nós que se tornam grandiosas e fascinantes às nossas almas.
Também não é verdade quando as pessoas dizem que quem tem um não tem nada. Tem muita coisa, sim. Como disse anteriormente, não importa quantidade. Vale muito o cuidado e o amor existente a quem temos ao nosso redor.
Uma flor ou um jardim inteiro sempre nos darão trabalho e sempre demonstrarão necessidade de carinho e afeto no momento em que fizermos um sinal de viagem para longe, pois logo sentirão a nossa falta. Que saibamos cuidar da nossa flor ou do nosso jardim, o que fica é o cuidado à sombra de uma árvore ou em volta de uma redoma.
Autora: Rosângela Trajano
Edição: Alexsandro Rosset