O HORROR: 20 DIAS EM MARIUPOL

agosto 4, 2024

Nilo Emerenciano – Arquiteto e escritor Muitos anos atrás vi o documentário de Peter Davis, Corações e Mentes (Hearts and Minds -EUA, 1974), que explodia na tela como as bombas que caíam sobre as pessoas durante a guerra do Vietnã– idosos, mulheres e crianças.


Nilo Emerenciano - Arquiteto e escritor


Muitos anos atrás vi o documentário de Peter Davis, Corações e Mentes (Hearts and Minds -EUA, 1974), que explodia na tela como as bombas que caíam sobre as pessoas durante a guerra do Vietnã– idosos, mulheres e crianças. Finalmente, em uma época em que não havia internet, as imagens nos eram trazidas em sua real dimensão trágica: destruição, insanidade, mortes, lágrimas e muita dor.

Algo parecido voltei a ver apenas na ótima série da Netflix, Chernobyl, de 2019, que relata os dias do maior desastre nuclear da história e a rede de mentiras que se tentou estabelecer em torno do fato para esconder incompetência e irresponsabilidade.

Mais uma vez na tela o sacrifício de vidas inocentes, como pano de fundo da dor de tantos. Emociona acompanhar o sacrifício de heróis como os bombeiros e mineiros que puseram em risco as suas vidas ao se expor a radiação.

Desta vez reuni coragem para ver 20 Dias em Mariupol, um documentário de autoria de Mstyslav Chernov, 2023. Uma equipe de reportagem da Associated Press registra os primeiros dias da invasão das forças Russas às terras da Ucrânia, começando pela cidade de Mariupol. O cerco, os bombardeios, as explosões, a destruição sistemática de prédios e de vidas, tudo isto visto pelo lado dos habitantes da cidade, a população civil, impedida de fugir daquele inferno.

Os jornalistas, única equipe que resolveu permanecer, fazem o que podem. Primeiro, para sobreviver. Depois para registrar em vídeo e fotos a barbárie daquilo tudo e enviar o material para os órgãos
internacionais de imprensa. O mundo precisa saber, afirmam, tudo que está acontecendo aqui. E muita coisa está acontecendo.

Difícil saber por onde começar. Talvez pelo medo estampado nas faces das pessoas. Ou pela falta de medicamentos básicos, como analgésicos e antibióticos, nos hospitais que ainda funcionam precariamente. Além do corte de energia elétrica, de água, de internet. Os celulares apenas servem como lanternas em meio a escuridão.


Cadáveres são enterrados em valas comuns, envoltos em sacos negros, sem um velório ou uma prece, apenas o choro desesperado de alguns familiares. Outros corpos são amontoados no porão dos hospitais. Crianças nascem em meio ao caos. Garotos são bombardeados ao bater bola em um campo de futebol. Um deles perde as pernas. Outros morrem. Velhos mostram as ruínas onde antes eram as suas casas.

Perguntam desnorteados: para onde eu vou? Senhoras andam pelas ruas desorientadas enquanto tiros soam cada vez mais próximo. Não sabem a quem recorrer. A cidade dispõe de poucos abrigos antiaéreos, o que obriga as famílias procurarem refúgio em porões. Tanques de guerra com a letra Z pintada na
fuselagem se posicionam nas ruas. E disparam contra os edifícios residenciais.

Os fotojornalistas optam por permanecer na cidade enquanto possível, percorrendo ruas, buscando abrigo entre escombros, entrevistando pessoas, médicos, enfermeiros, soldados. Filmando mortes, enterros, desespero. Ao final conseguem, milagrosamente, escapar do cerco atravessando território ocupado pelos russos em momentos de extrema tensão.

O diretor do documentário justapõe às declarações de autoridades russas as duras cenas obtidas. Enquanto eles afirmam que aquelas pessoas que aparecem feridas e mortas são atores e atrizes fingindo tudo, a gente assiste uma mulher grávida, ensanguentada, sendo conduzida em meio a bombas
para o hospital entre outras tantas vítimas.


Thomas Carlyle, (1795- 1881) historiador escocês, tem uma frase que cito de memória: “Infinito é o mal que o homem pode causar ao homem”. Infelizmente é verdade. Mas o contrário também é real. O bem que os homens podem fazer aos outros, as atitudes generosas e solidárias, o espírito de cooperação e misericórdia também é infinito.

Em 20 dias em Mariupol vê-se isso no trabalho de médicos e paramédicos, esgotados, trabalhando sem parar e com poucos recursos, em uma tentativa desesperada de minorar a dor de tantos. Vê-se também nos soldados que pouco podem fazer contra forças tão poderosas. Resta socorrer os civis, orientar, proteger, pondo em risco a todo instante as próprias vidas.


Joseph Conrad no livro O Coração das Trevas, põe na boca do seu personagem, Kurtz, refugiado nos confins do rio Congo, as palavras “o horror, o horror”. Em Apocalipse Now, Copolla adapta a história e faz o agora coronel Kurtz, interpretado por Marlon Brando, repetir essas palavras, referindo-se, muito provavelmente, aos horrores da guerra do Vietnã.

20 dias em Mariupol poderia terminar assim. O narrador falando “o horror, o horror”, ainda mais quando sabemos que aquilo era apenas o começo de uma guerra que ainda não acabou. As pessoas continuam a morrer.

O filme é uma paulada em nossas cabeças. Martin Luther King disse: Não é o alarido dos maus que me assusta e sim o silêncio dos bons. Ainda bem que alguns dos bons rompem o silêncio e tocam
nossas consciências.

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