NÃO É O CHICO?
NILO Emerenciano – Arquiteto e escritor Luís Mirunga, em atividade a serviço do governo, visitava o interior junto com uma equipe que atuava na área da orientação para fins de controle de natalidade.
NILO Emerenciano - Arquiteto e escritor
Luís Mirunga, em atividade a serviço do governo, visitava o interior junto com uma equipe que atuava na área da orientação para fins de controle de natalidade. Na época, vigorava uma ideia que os pobres não deveriam ter muitos filhos o que acarretaria superpopulação e escassez de alimentos. Em meio a palestra, Mirunga falando em ciclo menstrual, ouviu quando uma daquelas comadres se dirigiu à vizinha perguntando o que era menstruação. - Mulher, a outra respondeu, não é o Chico? Mirunga contava esse caso entre risos. Pois é, o “Chico” era uma coisa incômoda, constante e presente na vida de todas.
Mas meu propósito é falar de outro Chico. Chico Buarque de Holanda foi para nós da geração dos anos setenta e das outras que se seguiram, um deslumbre, uma nesga de esperança, um estímulo, uma voz que cantava por todos. Demos muita sorte. Apesar das trevas que se abateram durante duas décadas sobre o nosso país, fomos, a nosso modo, felizes. Receio até fazer comparações para não causar inveja a essa tal geração Z e adeptos da agamia. Cruz credo, era só o que faltava.
Mas não resisto quando descubro que Chico Buarque completou, em 19 de junho, 80 anos! Vocês, meninos, não vão conseguir entender o que foi Chico em nossas vidas. Olham as velhas fotos e só observam as ridículas calças boca-de-sino, camisas curtas e apertadas, sapatos cavalo de aço, pulseirinha calhambeque no pulso e os cabelos pelo ombros que nós orgulhosamente usávamos.
Fomos todos acostumados a ouvir sambas, boleros, tangos, guarânias com arranjos convencionais feitos por boas orquestras. Claro, não estou diminuindo a importância desse povo, todos santos do meu panteão. Cauby, Ângela Maria, Dalva Divina de Oliveira, Nelson Gonçalves, Lupicínio, Ataulfo, Pixinguinha, Noel Rosa e tantos mais. A radiola de meu pai foi passaporte para esse mundo de belas canções. E o rádio, claro, afinal eram todos artistas do rádio.
Mas surgiu de repente um bando de jovens cabeludos tendo à frente Roberto Carlos, inegavelmente talentoso e compositor fértil, comandando um programa chamado Jovem Guarda. Nada de rebeldia nessa turma, e sim uma bem sucedida estratégia de marketing. O ritmo não era propriamente novo, afinal já ouvíamos Cely e Tony Campelo cantando versões de Stupid Cupid, por exemplo.
Roberto concorria nas paradas com um sucesso vindo da Inglaterra, os Beatles. Covardia: eram quatro contra um. Tal como o Rei, os ingleses pareciam uma fábrica de sucessos, cada álbum melhor que o outro.
Mas no horizonte daqui surgia uma turma usando roupas coloridas e fazendo um som revolucionário, criando um movimento a que chamaram Tropicália. Entre eles havia um maestro chamado Rogério Duprat, responsável por arranjos maravilhosos. Se não acreditam em mim, experimentem ouvir os primeiros LPs de Gal Costa, Gil ou Caetano Veloso. Além disso, as letras eram de rara qualidade poética,
rompendo com o que se fazia até então. Esse pessoal de cabelo encaracolado beliscava a ditadura com as letras e principalmente pela inovação estética.
Os festivais promovidos pela TV abriram as portas para uma leva de brilhantes músicos. Gente como Edu Lobo, Elis Regina, Nara Leão, Sérgio Ricardo. Geraldo Vandré. E em meio a tudo isso, fazendo sambas e choros, compondo letras riquíssimas e melodias idem, abria caminho o talento do quase garoto Chico Buarque. Difícil para os gorilas de plantão associá-lo a uso de drogas ou outras atitudes confrontadoras.
Pois Chico tinha cabelos curtos, olhos azuis e uma cara de bom moço, daquele tipo que os pais desejam para as filhas casadoiras. E além do mais, seu primeiro sucesso falava de uma banda que passava nas ruas alegrando a cidade e falando coisas de amor.
E aí Chico veio comendo pelas beiras, como se fala no interior. Rapidamente tornou- se a voz dos estudantes e intelectuais, de todos que não aceitavam aquele cruel regime de exceção. Lutou contra a censura, criou o personagem Julinho de Adelaide como forma de driblar aquilo tudo, fez teatro, cinema e literatura e em todos saiu-se muito bem. Foi obrigado a sair do país e lá fora continuou a fazer músicas.
Quando chegar o momento, esse meu sofrimento
Vou cobrar com juros, juro
Todo esse amor reprimido, esse grito contido
Este samba no escuro
Você que inventou a tristeza
Ora, tenha a fineza de desinventar
Você vai pagar e é dobrado
Cada lágrima rolada nesse meu penar.
Suas canções eram tão perseguidas que o LP 'Chico Canta Calabar', de 1973, foi recolhido e proibido, desde o título, até a capa e letras das canções. Foi reeditado com o nome Chico Canta, a capa completamente branca e algumas das músicas trazendo só os arranjos musicais. Que artista aguentaria uma perseguição destas?
Chico aguentou. Pois é, Chico, passou aquilo tudo e você permanece firme, forte e sempre fantástico, lírico, sólido em suas convicções. O prêmio Camões só ratifica a qualidade da sua obra. Salve você e o seu trabalho. E salve todos que se dedicam a esse oficio de fazer música, a essa festa imodesta, que se prestam a essa ocupação. Salve o compositor popular!
Mas se você prefere ouvir Pablo Vittar, Anitta ou Ludmilla (todos tem uma consoante dobrada?), vá em frente, cada um tem o ídolo que merece.
👏👏👏👏👏👏
Ao Nilo Emerenciano o meu aplauso por esta crônica, absolutamente, justa, atual e sincera. Ao gigante Chico Buarque a nossa reverência e eterna gratidão.
Boa música é da nossa geração!
Chico, Caetano, Gil e tantos outros que nossos ouvidos não se cansam de ouvir.