Lembranças de Ceará-Mirim – Bodegas e Bodegueiros
Por Maria das Graças Barbalho B.
Por Maria das Graças Barbalho B. Teixeira
Há algum tempo atrás, creio eu, a cronologia da vida e da história, caminhava mais de vagarinho e, porque não dizer o quanto podíamos usufruir das coisas boas e simples que tínhamos ao nosso redor, ao alcance de nossos pés e mãos.
Como toda criança do interior, “esquecer” é para mim, um verbo que se conjuga sempre no passado/presente, fugindo terminantemente do seu sentido literal; todavia, em minha memória, entulhada de lembranças, me dão sinais de lucidez cada vez que regresso e passo por locais que foram importantes em minha vida, fazendo o tempo voltar de modo prazeroso e mágico.
É só bater o olho em uma esquina, uma casa, um prédio, uma rua e já todas as bodegas da minha Ceará-Mirim/RN, surgem com suas portas largas, pintadas com cores bem vivas, azul, verde, amarelo; a arrumação em seu interior era sempre a mesma: um grande balcão de madeira com uma abertura ao lado para dentro e para cima, que permitia a entrada e saída do bodegueiro exercendo para os fregueses o bom ofício de vendeiro; prateleiras entulhadas de bebidas, latas de doces, biscoitos, latas de óleo, sacos no chão com cereais, engradados, garajais de rapaduras, rolos de corda, de fumo; algumas tinham um fiteiro, espécie de armário de madeira com um vidro na porta onde víamos perfumes, sabonetes, linhas, agulhas, elástico, pó de arroz, batom, esmaltes e demais miudezas.
Algumas bodegas eram muito sortidas vendiam desde carne de jabá ou charque, farinha de mandioca, feijão, arroz, milho, café em grãos, pães, bolachas, biscoitos, óleo, manteiga, coco seco, açúcar branco e preto, macarrão, querosene Jacaré e outros produtos; tudo era vendido em quilos ou gramas.
Quantas e quantas vezes minha mãe me dizia: var lá na bodega do Seu Joca comprar 100 gramas de Manteiga Lírio; eu ia correndo com a caderneta na mão, fazia o pedido que vinha enrolado em papel manteiga e claro, comprava também uns confeitos de cevada e de hortelã.
Todas as bodegas que se “prezavam” como dizia meu querido pai, colocavam as balanças em cima dos balcões, “as vistas dos fregueses”, assim como, as medidas para óleo comestível, evitando-se de certa forma, insinuações de roubarem no peso.
Quando entro em Ceará-Mirim/RN, pela antiga Rua do Patu, hoje Gal. João Varela e vou olhando de um lado para o outro, vejo em minha imaginação, as bodegas de Seu Joca brejeiro, Seu Valdir, Seu Horácio, Seu Carlos Crescêncio, (por incrível que pareça ainda resiste aos supermercados e grandes armazéns da cidade). Na Rua Nova, hoje Rodolfo Garcia, encontravam-se as bodegas de Seu Valdemar da Luz, Seu Anízio e Dudu, casado com Marinete Farias.
Em destaque a bodega de Seu Chico Dantas, situada na Rua da Aurora, hoje Heráclito Vilar; se diferenciava das outras no que concerne os artigos que eram de luxo, por conseguinte, muito caro para o padrão de muitos ceará-mirinenses (queijo do reino, chocolates dos mais variados, licores, biscoitos recheados, vinhos, frutas secas e outras guloseimas mais; creio que também vendia nada em retalho como as demais bodegas populares e simples.
A bodega de Seu Dantas ficava em frente ao “gabinete” dentário de Dr. Canindé, um dos dentistas mais pacientes com as crianças e com os medrosos; em sua interlocução com o cliente muitas vezes indagando a respeito da família, nos fazia esquecer o famigerado motor de baixa rotação que perfurava nossos dentes tal qual uma perfuratriz abrindo um poço. Em lá estando, algumas vezes eu comprava chocolates com formato de peixinhos embalados em papel dourado; e porque não recordar o sabor delicioso e inconfundível do chocolate torroni.
Saindo das ruas já citadas, se faz pertinente, não esquecer outras bodegas famosas, por sua vez, privilegiadas que eram por estarem situadas no quadro do mercado público de Ceará-Mirim/RN; era nesse espaço famoso que aconteciam todos os domingos a grande feira da cidade recebendo inclusive os trabalhadores das usinas e engenhos de açúcar e rapadura quando seu soldos recebiam, gastando um pouco nas bodegas, nos locais dentro do mercado e na feira livre; além dos moradores da cidade outros municípios como, (Taipu, Baixa Verde/João Câmara, São Paulo do Potengi, São Pedro, Poço Limpo/Ielmo Marinho, Touros, e outros); vinham em caminhões, mistos, jeep, camionetes, tratores, a cavalo, fazerem suas compras e também trazerem suas mercadorias para venderem na feira.
É nesse quadro do mercado, que vamos encontrar as bodegas e os bodegueiros Valdeci Soares, Seu Vicente e Seu Agenor; Seu Manoel Luiz e Hélio Venâncio, não eram mais bodegueiros comuns, tinham se tornado donos de armazéns de grosso e varejo. Lembro-me ainda das bodegas de Seu Moacir pai de Edileuza que estudava comigo no Colégio Santa Águeda, que ficava na Rua São João, a de Seu Cirilo pai de Dóris na Rua Grande/Rua Café Filho, e a de Bubu na esquina da Escola de Comércio.
Pois muito bem, conheci todos esses locais de vendas tão peculiares; em sua maioria eram ao mesmo tempo negócio e moradia da própria família. Muitos dos referidos bodegueiros, possibilitaram aos filhos uma educação de boa qualidade com formação acadêmica. Tenho de muitos deles boas lembranças, quando pela manhã descia para o colégio e entrava em qualquer uma das bodegas, eles já sabiam o que ia pedir: pirulito kibom, cocada de leite ou chiclete bola.
Que saudade das bodegas e de todas as coisas gostosas que elas vendiam para crianças e adultos!
Mas, o que me faz sentir gosto e prazer, era o do guaraná Champanhe com biscoitos Maria, que meu pai comprava quando eu ficava doente; esse era meu “medicamento predileto” e acredito que de todas as crianças de minha geração. Eu tomava o guaraná quente mesmo e quando arrotávamos o gás saía quente pelo nariz; à época a geladeira era um utensílio doméstico restrito aos mais afortunados. Era delicioso, pena que hoje haja tanta recomendação para não se tomar refrigerantes; tudo faz mal, tudo dar câncer, tudo é nocivo a saúde. Mas, valeu à pena ter vivido tudo isso, sem culpas, sem cobranças, sem penalidades!
Muitas dessas coisas já se perderam nas lembranças de muita gente do interior; a volúpia do tempo acelerando cada vez o moderno, o novo, as máquinas de última geração provocando uma corrida desenfreada pelo consumismo descartável, entulham e transformam o planeta terra em um lixão incomensurável.
Dedico essa crônica aos conterrâneos e contemporâneos bodegueiros de Ceará-Mirim/RN.
Adorei esta crônica, me deu vontade de passear por Ceará-Mirim e conhecer mais de perto os bodegueiros e suas cores. Adorei!