Esmeril da França

janeiro 17, 2021

Nadja Lira – Jornalista e escritora Tive a sorte de nascer e viver minha infância na cidade de João Câmara, a ‘Capital do Mato Grande’, numa época em que as crianças do interior tinham liberdade e segurança para brincar na rua.

Nadja Lira - Jornalista e escritora

Tive a sorte de nascer e viver minha infância na cidade de João Câmara, a 'Capital do Mato Grande', numa época em que as crianças do interior tinham liberdade e segurança para brincar na rua. Televisão, videogame, tablete e outros aparelhos eletrônicos nessa época, eram artigos de luxo e, portanto, estavam longe do alcance de nossas famílias. Então, brincávamos com brinquedos fabricados por nós mesmos. Só quem viveu este período mágico pode imaginar a alegria que é ver uma lata de óleo se transformar num caminhão, ou uma casca de melancia se transformar uma boneca. As brincadeiras ficavam por conta da nossa imaginação.

Além disso, eu e meus primos tivemos um privilégio a mais: nosso avô era um exímio contador de histórias. Essa sua habilidade rendeu-lhe o título do maior mentiroso da cidade. À noite, a gente sentava na calçada após o jantar, para ouvir as fantásticas histórias que nosso avô inventava e que arrancava de nós as mais sonoras gargalhadas. Era um bom tempo onde ninguém se preocupava com roubos, assaltos e arrastões. As únicas coisas que nos davam medo era o Bicho-Papão, o Boi da Cara da Preta e o Papafigo.

João Câmara era uma cidade pequena e pacata, como devem ser as cidades do interior, mas já famosa por causa da sua feira realizada aos sábados e que se constituía em uma das maiores do Rio Grande do Norte. A feira, na verdade, se iniciava na sexta-feira à noite, ocasião em que os comerciantes vindos de todas as partes do Estado começam a chegar para armar suas barracas e expor suas mercadorias.

A realização da feira onde se comercializava todo tipo de produto, parava uma boa parte da cidade, porque as barracas se espalhavam por várias ruas da cidade. Nesta época o Mercado Municipal era localizado em frente ao prédio da Prefeitura Municipal e os comerciantes se organizavam ao seu redor e iam se espalhando pelas ruas à fora.

Meu avô contava que havia um comerciante paraibano chamado Manoel Antunes, que vinha vender fumo de rolo, todo sábado. Trazia o produto na carroceria de uma camioneta e já tinha uma freguesia cativa. Esse homem, segundo meu avô, era magro demais e por essa razão passou a ser conhecido na cidade como 'Esqueleto Andante'. Meu avô também dizia que ele devia ser magro de ruim, porque a quantidade de alimento que ele consumia, não era normal. “O sujeito comia mais do que um esmeril da França”, dizia vovô.

Certo dia, pouco antes da feira acabar, Manoel Antunes foi ao Mercado Municipal onde se comercializava comida pronta, e comprou tudo o que havia de alimento. O Mercado era uma espécie de Praça de Alimentação, onde as mulheres vendiam a comida pronta, tipo prato feito. Ali havia feijão preto, branco e verde com arroz, macarrão, farofa, carne assada, torrada, buchada. picado, carneiro e rabada, entre outras iguarias. Havia comida para todos os paladares. E para quem quisesse apenas tomar café, podia escolher pão francês, crioulo, doce, bolo de milho, de ovos, bolo preto, canjica, pamonha, tapioca de todos os tipos. E isto sem contar a variedade de doces caseiros.

Ao ver aquela grande variedade de comida, Manoel Antunes não teve dúvida: Pagou por tudo o que havia para ser vendido e disse que tão logo a feira acabasse, ele viria comer. As feirantes imaginaram que ele viria com um grupo de pessoas para comer tudo o que havia comprado. Mas, para surpresa de todos, ele veio sozinho e comeu tudo. Depois de tomar um cafezinho, partiu para a pensão de Dona Genoveva, palitando os dentes. A notícia da comilança logo se espalhou pela cidade e chegou aos ouvidos de dona Genoveva, que comentou com seu marido: “Ele comeu demais. Vai passar mal”.

Antunes foi para seu quarto, tomou banho e depois foi bater papo com os amigos na calçada. Por volta da meia noite resolveu ir dormir, já que ia viajar na manhã seguinte. Dona Genoveva, e o marido terminaram de arrumar as coisas da pensão e também se preparavam para se recolher.

Quando passaram diante do quarto de Manuel Antunes escutaram um gemido e Dona Genoveva comentou com o marido: “Eu não disse? Ele está passando mal. Esse homem comeu feito um esmeril da França”. E num ato de preocupação bateu na porta e perguntou: “Seu Manuel, o Senhor está bem? Quer um chazinho? ” Ele rapidamente abriu a porta e respondeu: “Quero sim! Mas não esqueça as bolachas”.(NL 25/09/2020)

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