Fonte: Vozes da minha cabeça!
Cefas Carvalho – Jornalista e Escritor Paro em um barzinho de amigos para assistir Manchester City x Al Hilal, pelas oitavas de final da Copa do Mundo de Clubes, e mal os jogadores dão o pontapé inicial escuto um homem dizer para outro na mesa ao lado: “Vamos ver se o City compra essa partida […].

Cefas Carvalho - Jornalista e Escritor
Paro em um barzinho de amigos para assistir Manchester City x Al Hilal, pelas oitavas de final da Copa do Mundo de Clubes, e mal os jogadores dão o pontapé inicial escuto um homem dizer para outro na mesa ao lado: “Vamos ver se o City compra essa partida também”. No que o ouvinte não respondeu, o primeiro continuou: “O City tem dinheiro dos árabes e compra os juízes e os títulos, igual ao PSG. Tanto que eles dois sempre são campeõies”.
Tentei abstrair a insanidade mas no momento recordei de algo parecido que havia vivido semana passada em uma fila de lotérica (que assim como as distribuidoras de Nova Parnamirim e barzinhos de Petrópolis, são redutos de idosos de extrema direita), quando um senhor se virou para a moça atrás dele e disparou: “Você sabe que Bolsonaro venceu as eleições de 2022, né? Mas quem manda no país é o TSE e o STF e eles não queriam o capitão no poder porque ele estava contra esse sistema que a gente vê aí”.
Eis que nesta manhã de terça-feira, acabei fazendo um link destas situações com um vídeo bizarro que viralizou nas redes, filmado durante a micareta pró-anistia para golpistas realizada por Bolsonaro e Malafaia na Avenida Paulista neste domingo, quando um repórter perguntou para um cidadão de bem cinquentão devidamente uniformizado com a camisa da CBF, qual a razão do ato e porque ele estava ali. A resposta da criatura, ipsis litteris: “isso não é uma briga de Bolsonaro com Lula nem com STF, isso é o Majestic Doze, é o capeta, o demônio, o satanás. Trump descobriu o endereço deles e conseguiu pegar todos eles e se algum deles, dos Majestic Doze desistir, desertar do mal, é porque o bem venceu, é bem vindo do lado do bem”
Assisti/ouvi várias vezes o vídeo, tanto para ter certeza das palavras do sujeito como para conferir se não era uma pegadinha, um sketch de humor ou se o dito cujo estava sob efeito de alguma substância. O fato é que o homem sustentou a sério em uma gravação que teria potencial de ser amplamente divulgada, a tese (ou certeza, para ele) que Trump descobriu endereço de demônios, que estariam tentando resgatar os demônios para o lado do bem e que ele estar ali na Paulista tinha, sabe-se lá porquê, relação com isso e não com a política brasileira.
Destas informações, qual a fonte? Trump disse isso sobre demônios? Alguma reportagem, documentário, declaração de líder religioso? Nada. A fonte foram as vozes da cabeça dele. Devidamente potencializadas por informações de grupos de zap e cultura da pós-verdade dos tempos atuais, claro. Assim como as fontes de informações como a que Bolsonaro havia vencido as eleições de 2022 ou Manchester City e PSG compram títulos em vez de vencê-los em campo, não têm qualquer base em informações, matérias jornalísticas ou sustentação em fatos e evidências.
Na verdade, os tempos atuais de alta tecnologia e inclusão digital são mais propícios às pessoas ouvirem vozes na cabeça que o período de santos e bruxas da Idade Média. Antigamente a ignorância era justificada pela quase total falta de acesso ao conhecimento pelo povo e à concentração de conhecimento em uma elite religiosa e aristocrática que manipulava o saber. Hoje, a ignorância é filmada e celebrada com orgulho. Opinar sobre algo sem qualquer embasamento com confiança arrogante se tornou uma prática usual. No mundo de 2025 não se precisa de uma fonte para afirmar ou opinar sobre alçum tema. Cobrar a fonte é está se tornando aos poucos uma prática mal vista e indesejada. Inclusive já perdi amigos reais e virtuais por questionar informações e cobrar onde a pessoa tinha visto e lido aquilo.
É preocupante tanta gente com acesso à escolaridade, ensino superior e conhecimento se preste a reproduzir inverdades, boatos, cismas e insanidades criadas pela própria cabeça. Claro que isso é instrumentalizado pela extrema-direita como parte do projeto de poder, mas a imbecilização da humanidade enquanto internauta já havia sido predicada e apontada pelo escritor italiano Umberto Eco. E o papel das redes sociais (incluindo aí canais de YouTube e grupos de zap) é visível e poderoso. Não há muito o que fazer para reverter este quadro.
