AS NOVAS SALOMÉS
NILO Emerenciano – Arquiteto e Escritor Sei perfeitamente que é quase causa perdida lutar contra as inovações – motivadas pelos dos “bolsos cheios e dos corações vazios” como dizia o Mestre Câmara Cascudo – mas não custa registrar nosso protesto.

NILO Emerenciano - Arquiteto e Escritor
Sei perfeitamente que é quase causa perdida lutar contra as inovações - motivadas pelos dos “bolsos cheios e dos corações vazios” como dizia o Mestre Câmara Cascudo - mas não custa registrar nosso protesto. Claro que vou falar da nossa festa mais tradicional e característica - o São João.
Fogueiras, apadrinhamentos, leitura da sorte, faca na bananeira que as garotas casadouras (pois é, existia isso) cravavam para saber o nome dos futuros maridos, traques, mijões, espanta-coió, estrelinha, pequenos balões. Milho assado diretamente na fogueira.

Minha mãe amarrava uma aliança a um fio de cabelo e dependurava sobre um copo d’água. A aliança se movimentava pêndulo e ela contava as pancadinhas na borda. O número delas seria a idade em que iríamos casar. Na minha vez ela sempre cochilava e a aliança caia dentro do copo. Acho que por isso demorei tanto a me decidir pelo casamento. Quando ela reclamava eu tinha um pretexto na ponta da língua: - A culpa é sua…!
São João era comida, sabores e aromas. Feitas em casa. Canjica, pamonha milho cozinhado envolto em palha, bolos, pés-de-moleque, cocadas. Dia desses me ofereceram quentão em uma festa. Não fazia parte da nossa tradição. Bebi um gole para experimentar. Melhor a sangria que nossos pais nos davam um pouco.

Festa junina era música, principalmente. Som de sanfonas e zabumbas. E danças. Quadrilhas, ensaiadas ou improvisadas (essas mais divertidas por conta dos erros e embaraços) e logo depois o arrasta-pé, ou rela-bucho, ou ainda limpa-fivela. Namoricos inevitáveis. Todos dançavam. Havia os clássicos.
“Foi numa noite, igual a essa, que eu te dei o meu coração, o céu estava, todo em festa, pois era noite de São João.”
Para mim a diversão começava mesmo quando meu pai chegava do trabalho trazendo os fogos de artifício, os nossos, bobinhos, e os mais vistosos que só os adultos manuseavam. Aqui e ali um balão cruzava o céu. Não havia proibições. Mas nossos balões eram pequenos, longe daqueles enormes que soltam em São Paulo, ameaçando matas, aeroportos e tudo mais. Tão pequenos que a gente cantava: “cai, cai, balão, cai aqui na minha mão”.

Os bairros organizavam seus arraiais. Uns grandes, como o forró da Esmeralda, ali em Potilândia. O das Quintas, ali nas cinco pontas. O forró da Ceasa. E as muitas ruas fechadas e enfeitadas pelos moradores para a diversão da famílias. Um ponto comum: o fole roncava com gosto.
No interior, então, nem se fala. Os componentes das quadrilhas se deslocavam montados a cavalo, carregando nas garupas o seu par. Todos vestidos a caráter.
Viajei uma vez de trem, de Nova Cruz a Natal em pleno São João. Era uma festa só. As casas da beira da estrada todas com balõezinhos de papel nas janelas e uma fogueira no terreiro. Isso sim, era comemoração!

Repito, sei da inutilidade de se opor às mudanças que ocorrem, tipo os festivais de quadrilhas promovidos pela Rede Globo de televisão, com as tais quadrilhas estilizadas. Afinal, água de morro abaixo… Mas o que incomoda na verdade é a maneira e os motivos pelos quais essas mudanças acontecem. As tretas que estão envolvidas nisso tudo.

Já deu para perceber que falo dos espetáculos contratados a peso de ouro para alegrar o período junino na cidade, a grana por trás de tudo isso, a insensibilidade. A começar pelo slogan, de uma pobreza
impressionante: “São João em Natal, sensacional”. De doer. Ninguém teve uma ideia melhor?

E aí segue-se uma carnavalização das festas juninas. O onipresente Bel Marques, além de Alok, Luan Santana, Simone Mendes, Xand Avião, Mari Fernandez, Raça Negra, Belo, Calcinha Preta. Consultei Mari
Fernandes no novo “pai dos burros”, o Google, sabe o que tem lá na net? Estilo: piseiro sofrência. Não sei o que é piseiro, e sofrência deve ser substituto da roedeira do meu tempo. Nesses dias vão lançar a chifrência.

Aliás, quem diabos é Alok? Será gente de verdade ou uma IA (Inteligência Artificial) dessas? Afinal teve até show de drones e atraiu mais de 100 mil pessoas, informam as assessorias. Drones no São João? Valha-me, meu padrinho Padre Cícero Romão Batista do Juazeiro!
O que falta? Onde estão nossos artistas raiz, os forrozeiros, sanfoneiros, zabumbeiros e cantores? Só faltou, para engrossar o caldo, a venda dos famigerados abadás e os cordões de isolamento.

Gilberto Gil nos anos setenta gravou Lunik 9, uma bela canção.Alertava para os riscos de desromantização da lua pelas viagens espaciais. “Poetas, seresteiros, namorados, correi. É chegada a hora de escrever e cantar, talvez as derradeiras noites de luar”. Pois é. vamos cantar e escrever sobre as festas de Santo Antônio, São João e São Pedro. Fincar no terreiro o mastro com a imagem do santinho querido.
Afinal, em 1941 demoliram a Praça Onze, no Rio de Janeiro, lugar do desfile das escolas de samba. Herivelto Martins e Grande Otelo fizeram um samba em protesto: “Vão acabar com a Praça Onze/Não vai haver mais Escola de Samba, não vai/Chora o tamborim/ Chora o morro inteiro/Favela, Salgueiro/Mangueira, Estação Primeira/Guardai os vossos pandeiros, guardai/Porque a Escola de Samba não sai.”
O samba é lindo, mas o carnaval não acabou, as escolas não guardaram os pandeiros e resistiram a todas as inovações e truques tecnológicos ao longo dos anos. Muito menos vão acabar o São João. Os gestores e políticos passam como Salomé passou e ninguém mais sabe dela. A tradição se mantém acesa e viva como as fogueiras que saúdam os nossos santos queridos. Salve São João!


Como sempre, o esmero na crônica escrita. Parabéns pela brilhante narrativa Emerenciano. Festejos juninos viram oportunidades para gestores acariciarem o ego do gado manso, cego às necessidades da coletividade. O bolso desses incham desmedidamente a revelia dos órgãos de fiscalização, diga-se, Tribunais de Contas, e ainda dão vivas para São João.