Crônicas do domingo
A Chegada de dona Soledade no Céu *Gutenberg Costa – Pedagogo, Bacharel em Direito, Escritor e folclorista.
A Chegada de dona Soledade no Céu
*Gutenberg Costa – Pedagogo, Bacharel em Direito, Escritor e folclorista.
Sempre em que demoro em uma cidade, me entendo bem com seus tipos humanos populares de rua. São homens e mulheres do povo, mais conhecidos e famosos do que os ricos e políticos. Jamais devem ser chamados de ‘folclóricos’, ‘loucos’ ou excêntricos. São tão humanos e, ás vezes, mais solidários do que muita gente que se diz ‘religiosa’. Alguns andam do modo que preferem com suas manias e trejeitos bem peculiares. A riqueza e o orgulho ficam bem longe deles. São as verdadeiras almas das cidades, como tão bem profetizou o jornalista e escritor carioca João do Rio. São pouco vistos e relacionados em crônicas e livros. Esses, acima de tudo, merecem todo nosso respeito e admiração.
Pois bem, em relação a Pendências, o saudoso amigo padre e escritor José Luiz Silva, em seu livro ‘Na Calçada do Café São Luiz’, fez um justo destaque de grande parte do seu santo rebanho pendenciense: “José Bembém; Luiz de Galdino; Absalão; Maria Grande; Zé Bolô; Zé Frederico; Maria Roque; Joaquim Boi; Xexéu; Chico Pereira; Ambão e Luiza de Ambão; Berguinho de Chico Torquato; Washington Protético; Eliza dona do Cabaré; Joãozinho Freire; Agostinho Fernandes; Mário Paulino; Vicente Queiroz; Chico Fernandes; Banzinha; Pureza de Juvêncio; Joaninha de Pipiu e Capão”, entre outros. Todos deixaram saudades de suas histórias, causos e exemplos de suas vidas. Há tempos que estão gargalhando com o referido padre de São José de Campestre, no céu dos bons e justos... Confesso que tenho orgulho em dizer que ali é o torrão sagrado de meus ancestrais maternos!
Não mereço, mas por proposição do então vereador meu primo Hermógenes Neto, sou pendenciense desde 1998. E por citar o ‘Neto de Dagmar’, este quando esteve na Câmara Municipal de Pendências, deu entrada a um inusitado e brilhante projeto, denominando o mais famoso artesão e soltador de balões juninos da cidade, ‘Cícero Azêdo’, para uma rua da referida cidade, em meio há tantos ricos falecidos. Não conheço tal iniciativa tão justa, até os dias de hoje!
Eu, ainda criança pisei no rastro de muitos nomes acima citados: comprei bugigangas nas sortidas ‘bodegas’ de dona Pureza e seu Chico Torquato. Guardo entre minhas tralhas e cacarecos, duas lamparinas, feitas pela eximia funileira Joaninha de Pipiu. Não consigo, mas tento, esquecer do infernal alicate de arrancar dentes, do doutor Washington Luiz. Capão, que era meu parente, tinha um linguajar todo diferencial quando estava ‘meio chapado’, que enlouqueceria o melhor dos dicionaristas. E sabe lá o que diabo dizia o bêbado Capão!
Guardo muitas saudades de Batista Doido, que ia almoçar todos os dias na casa de minha saudosa avó Francisquinha Medeiros. O pobre chegava faminto de suas andanças com seu inseparável carrinho de lata e só saia quando eu jogava água em cima dele. Diziam que nunca havia tomado um banho na vida. Corria de água, feito o diabo, da cruz. Adolescente comia com prazer os alfenins de dona Laura e as cocadas de rapadura de dona Xuxa. Quando já adulto, sempre ia ao velho mercado, degustar a galinha torrada de Raimunda Preta e o carneiro com cuscuz de Cabeleira. E quem se atrevesse a me chatear era corrido pelos palavrões da braba Raimunda. Não me é fácil esquecer as conversas de Dôdora e Raimundo. Duas enciclopédias humanas de conhecimentos e vivências de toda Região. Do proseado sem fim do meu tio Maneco Medeiros, o maior conversador do mundo. Ninguém falava com ele, pois o mesmo não parava a matraca. Parece que Dona Estela Medeiros, minha mãe muito sábia, deu-me da água de chocalho de seu tio Maneco...
Na minha mais recente visita aquele chão abençoado por São João Batista, conversei horas com a dona Josita. Uma vida que daria um belo documentário. A mesma não tem vergonha de ter ganhado seu dinheiro dos ditos ‘puritanos’, nos tempos das discriminações. Era uma corajosa mulher do amor livre em uma cidade pequena e religiosa. Segundo ela me confessou, meus tios maternos foram seus antigos desejos sexuais: “Pode ter certeza, que eles eram os homens mais bonitos que eu já vi em minha vida”. O tempo é cruel! Josita agora está velha e cansada. Sozinha criou honestamente sua família. E ainda chegam a dizer que teve uma ‘vida fácil’? Hoje, conta com orgulho e lágrimas nos olhos, sobre um seu neto, que é um bom jogador profissional de futebol lá pras bandas do sul. E o melhor da história é que ele é muito grato à guerreira e sincera vovó...
Já a dona Soledade, me cobrava logo de cara toda vez que me via chegar: “cadê minha lembrancinha seu moço!”. Uma vez levei um par de brincos e ela colocou de imediato nas orelhas, ostentando as outras mulheres, como se fora puro brilhantes. Tempos andava carregando uma imagem em uma caixa, pedindo ‘ajuda’ para o seu santo de devoção. Eu sempre colaborava, mas dizia mesmo sem ela gostar de ouvir: - É pra você, que eu nunca vi santo comer e beber... E ela recebia, mas respondia em cima da bucha: “Não acredite na mentira desse povo não meu senhor. Eu juro que o que me dão é mesmo para o santo!”
Tenho histórias de Soledade que já daria um livro. Semana passada, minha prima Késsia manda a triste noticia, acompanhada de uma foto: “Soledade morreu hoje de Covid!”. Como se costuma dizer: ‘queda e coice’, levaram a dita Soledade ao céu. São Pedro com o seu riso e perdão a deixou entrar como ela sentava-se sem pedir licença na mesa da minha tia Alda: “Vim almoçar aqui!”. E de surpresa o tal miserável Vírus, que atira feito cego em tiroteio, acertou em cheio a pobre da Soledade. Doença miserável, que já devia ter ido há muito tempo pra ‘caixa prego’ ou ‘cafundós do Judas! E vocês, mascarados leitores e leitoras, concordam?
Um mito chamado Chico da Bomba
*Nadja Lira (Jornalista • Pedagoga • Filósofa)
Francisco Paulino de Almeida mais conhecido como Chico da Bomba foi prefeito da Cidade de João Câmara, antiga Baixa-Verde, e se notabilizou na história política do Estado, por causa do seu vocabulário simples e por sua facilidade em responder às provocações de seus adversários políticos. Chico também se destacou pelas situações hilárias que protagonizou enquanto viveu na cidade que o acolheu.
Natural da região do Seridó, Chico da Bomba mudou-se para João Câmara ainda jovem e lá viveu até seus últimos dias. Pobre, semianalfabeto e trabalhando como motorista de caminhão, ele surpreendeu a todos quando se candidatou a prefeito da Cidade sendo eleito com mais de mil votos de diferença.
A disputa para o cargo não foi fácil, porque ele concorreu com candidatos de grande poder aquisitivo. Ele, porém, por ser um sujeito simples e conhecedor das necessidades do povo humilde, logo conquistou a simpatia desta parcela da sociedade elegendo-se prefeito do município.
Chico da Bomba não deixou grandes obras realizadas na cidade, mas sua história o imortalizou, de modo que ele é lembrado, não por sua atuação política, mas como protagonistas de histórias engraçadas, que ultrapassam as fronteiras da cidade e até do Estado.
Eu passava férias em Recife e num dia de sol intenso, degustava uma água de coco na praia de Boa Viagem, quando encontrei alguns conterrâneos residentes nas terras pernambucanas e passamos a relembrar as histórias vividasem João Câmara e que envolviam Chico da Bomba.
Uma das histórias que mais me chamou a atenção foi contada por Ademar Santana, genro do Senhor Torquato Lira, figura muito conhecida em João Câmara. Segundo Ademar, tão logo assumiu o comando do município, Chico da Bomba demonstrou uma grande preocupação com a população mais pobre, especialmente quando alguém adoecia e precisava de internação hospitalar, o que ocorria no Hospital Miguel Couto, hoje Hospital Onofre Lopes.
Ocorre que um cidadão residente na comunidade de Morada Nova adoeceu, ficou internado no Hospital, mas não resistiu à gravidade da doença e acabou morrendo. A família, então, recorreu ao prefeito, que logo se comprometeu a enviar um carro para fazer o translado do corpo para o funeral na cidade.
E foi o que fez. Chamou um dos motoristas da prefeitura e deu a ordem para que ele fosse ao Hospital Miguel Couto e levasse o corpo para João Câmara. O motorista dirigiu-se prontamente ao hospital, cumprindo as ordens que recebera.
Nesta época havia uma corrente no final da rua Felizardo Moura, no bairro das Quintas, local conhecido como Gancho de Igapó, onde os guardas rodoviários fiscalizavam todos os veículos que se dirigiam à ponte de Igapó, com destino à algumas cidades do interior.
Ao chegar na corrente, o motorista da prefeitura e seu ajudante foram parados pelos guardas de plantão e eles perguntaram para onde aquele corpo seria levado. O motorista respondeu: “Para João Câmara”. Um dos guardas, então, pediu o atestado de óbito, mas o motorista não sabia que documento era este. “Ninguém me falou que para transportar o defunto era necessário este documento”, disse o motorista. O guarda, por sua vez, explicou que sem este documento, o defunto não poderia sair de Natal.
O motorista desceu do carro e chamou o ajudante. Estranhando a situação, o guarda perguntou: “O que o Senhor pretende fazer? ” E o motorista, com a cara mais inocente do mundo respondeu: “Vou deixar o caixão aqui, já que ele não pode ir a sua cidade. Vocês providenciam o enterro”.
Os guardas ficaram no maior desespero, porque os dois já se preparavam para tirar o caixão da carroceria do caminhão, sem ouvir os apelos dos guardas. Depois de muita conversa, os guardas perceberam que não havia muito o que fazer e acabaram por liberar a viagem sem o atestado de óbito.(NL 25/06/2020)
Gostei imensamente dessa Crônica. É um relato que mostra a simplescidade e o valor de.uma região nordestina rica em humanidade.