Pe. Matias Soares - Pároco da paróquia de Santo Afonso Maria de Ligório
O evangelho de São Mateus apresenta um discurso comunitário de Jesus, onde o Mestre nos ensina, especificamente em (cf. 18, 15-35), que algumas atitudes são imprescindíveis para que a comunidade possa permanecer em harmonia, na concórdia e na paz. Esses valores, em nossos tempos, tornaram-se extremamente relevantes. Vivemos envolvidos numa cultura do cancelamento, da negação, da indiferença e do descarte do outro. Estamos carentes da valorização de tudo aquilo que nos fortalece enquanto animais políticos; ou seja, sujeitos da comunidade e da existência em sociedade. Precisamos robustecer nossas relações pela fraternidade e a amizade social (cf. Papa Francisco).
Pela ênfase dada à centralidade do indivíduo, a sociedade gradativamente foi massificando e constituindo sistemas que relativizam o reconhecimento das pessoas e suas relações. O outro é tido como meu inferno. Alguém a ser devorado (cf. T. Hobbes; JP Sartre). O liberalismo nos colocou na lógica da competividade (cf. JS Mill). As instituições terão por razão de ser o cuidado dos direitos individuais. A tirania do mérito é o que passa a dar mobilidade ao funcionamento das engenharias desenvolvimentistas. As tradições que fortaleciam as identidades serão substituídas, pouco a pouco, pelo que cada um deseja e quer que seja reconhecido. Haverá a mudança antropológica, que retomará a ideia de que a “medida de todas as coisas” é o homem, só que agora com a centralidade no Eu. Numa perspectiva psicanalítica, podemos afirmar que o ‘narcisismo’ é a marca registrada do humano contemporâneo. Essas leituras precisam ser feitas para a síntese que somos chamados a alcançar.
Segundo Byung-Chul Han, “o narcisismo não é idêntico ao saudável amor-próprio, que não tem nada de patológico. O amor-próprio não exclui o amor pelo outro. O narcisista, em contrapartida, é cego frente ao outro. O outro é dobrado até que o ego se reconheça nele. O sujeito narcisista percebe o mundo apenas como sombras de si mesmo. A consequência fatal: o outro desaparece” (cf. “A expulsão do outro”, pág. 40-41). O fortalecimento desse fenômeno social da pós-modernidade, tem sido cada vez mais sensível com as muitas ferramentas midiáticas que são utilizadas cada vez mais pela humanidade hiperconectada.
Neste cenário, o ser cristão, numa Era pós-cristão, tem desafios novos para anunciar o Evangelho, já que, o cristianismo tem um caráter eminentemente comunitário. O mandamento do amor a Deus e ao próximo é o seu fundamento ontológico e existencial (cf. Jo 4, 7-21; 1Cor 13, 1-13). A tentação diária de pecar contra o amor é o drama permanente a ser transformado na razão, nos sentimentos e nas ações dos cristãos. Os movimentos da história do cristianismo, da sua essência e da sua fisionomia, são carregados de significado quando o estilo de vida dos discípulos de Jesus Cristo for identificado pela ‘forma sempre antiga e sempre nova’ destes testemunharem o amor.
O Papa Francisco com frequência menciona a ‘fofoca’ como uma prática nociva à vida de comunidade. Numa homilia na Casa Santa Marta, assim expressou-se Francisco: “Fofocar é terrorismo, porque quem fofoca é como um terrorista que joga a bomba e vai embora, destrói: destrói com a língua, não promove a paz. Mas é esperto, eh? Não é um terrorista suicida, não, não, ele se protege bem. O fofoqueiro é um terrorista” (04/09/2015). O amante da fofoca não tem ética. Ele peca contra o amor ao próximo. É venenoso e covarde. Dissemina a discórdia e a divisão. Mata o irmão com as mentiras e maledicências. Em outros tempos, tinha só a língua para provocar desconstrução da dignidade das pessoas. Hoje, as mídias digitais são usadas para criar ou repassar notícias falsas – Fakenews – com mais quantificação das informações destrutivas.
Na tradição cristã, São Tiago Já advertira os primeiros cristãos sobre o perigo da língua e os malefícios que ela podia gerar (cf. Tg 3, 1-12). Santo Agostinho escreveu sobre o tema da mentira (cf. De Mendacio – Contra Mendacium); contudo, as tentações continuam a perseguir as mentes e os corações marcados por ressentimentos e invejas. Os fatores que potencializam esses vícios são variados e perceptíveis na personalidade de indivíduos com problemas de caráter. O fofoqueiro, quando o analisamos, diz mais de si, em difamar e denegrir os semelhantes, do que dos outros.
O conselho dado por Francisco é que quando temos algo contra, ou favor, dos nossos irmãos, que o digamos ao próprio. Isso é uma questão ética. Em família, nas Igrejas, comunidades e na sociedade de um modo geral, essa orientação evangélica poderia evitar muitos problemas. A verdade é sempre libertadora. Às vezes, vidas são destruídas por causa de conversas mentirosas, disseminação de calúnias, difamação e perjúrios. Considerando a gravidade destas situações, o próprio ordenamento jurídico tipifica essas atitudes como criminosas (cf. CP, art. 138-140).
No eclesiástico, também há a legislação penal para quem acusa falsamente outra pessoa, com as seguintes sentenças: “Quem denuncia caluniosamente de qualquer outro delito junto ao Superior eclesiástico, ou de outro modo lesa a boa fama alheia, pode ser punido com justa pena, não excluída a censura”. Ainda: “O caluniador pode ser coagido também a prestar reparação adequada” (cf. CDC, 1390, § 2 e 3). Existe a máxima jurídica que afirma: “Quem acusa, tem que provar!”
Num contexto de tantas contraposições e polarizações, com uma confusa noção de significado da liberdade, com uma crise profunda das responsabilidades, que precisam ser observadas, não só em relação aos nossos direitos, como também em relação aos direitos dos outros, faz-se cada vez mais necessária nossa capacidade para agir com prudência, discernimento e senso de justiça nos posicionamentos acerca das pessoas com as quais nos relacionamos; sobre as quais emitimos pensamentos e verbalizações. Os acusadores que visam a perseguição e o aniquilamento de quem não compactua com as diferenças e polaridades têm muitos meios para dissecar a integridade de quem é objeto das suas tentativas destrutivas.
Jesus Cristo ensina aos seus discípulos que, entre nós, não deve ser assim (cf. Mc 10, 43-45). É o serviço a marca identitária de quem tem a liderança na comunidade eclesial. A busca insana pelo poder faz muitas pessoas perderem e renegarem os valores do Evangelho. Na sociedade, nas variadas relações de poder, com sua microfísica (cf. M. Foucault), onde os “fins justificam os meios” (cf. N. Maquavel), a quebra dos pactos é constante. Nos ambientes cristãos, esses comportamentos são contraditórios e nocivos às estruturas de convivência. Contudo, quando há a necessidade de julgamentos, que possam acontecer entre os membros da própria comunidade.
O apóstolo Paulo, escrevendo aos cristãos de Corinto, asseverava que as contendas existentes deveriam ser resolvidas dentro da própria comunidade (cf. 1Cor 6, 1-11). A imaturidade humana e de fé desgasta a beleza dos ordenamentos sociais e eclesiais. Tudo isso passa pela construção cotidiana de tecidos moldados pelo amor à verdade e ao bem de cada pessoa. Quando as nossas consciências estão esvaziadas destes propósitos, então não teremos mais autoridade e credibilidade para falar e testemunhar o Evangelho.
Sendo assim, bem situados filosoficamente e teologicamente, podemos afirmar que a correção, a honestidade e a capacidade de falar aos nossos irmãos de comunidade o que somos e o que sentimos, com coragem e hombridade, é uma atitude indispensável à salubridade das nossas realidades sociais e eclesiais. A falsidade, a mentira, a difamação, a calúnia, as intrigas e as ofensas são próprias de quem está agindo conforme a carne. Os que agem conforme o Espírito têm outras atitudes.
A nossa liberdade existe para que possamos fazer a vontade de Deus, estarmos em comunhão com Ele e com os irmãos pela prática da caridade e da correção fraterna, tornando a comunidade um lugar da manifestação dos sinais do Reino. Numa sociedade fortemente marcada por um secularismo sufocante e da avidez individualista, se quisermos construir um novo humanismo integral e solidário, o caminho a ser percorrido é o do testemunho desses valores (cf. Gl 5, 1-24). Por isso, chama o teu irmão, torna-te responsável pelo bem dele, mas também pela tua salvação. Assim o seja!