Artes de Maria do cais
Nilo Emerenciano – Arquiteto e escritor Pois não é que tive que voltar na repartição do atendente conversador? Pois é.

Nilo Emerenciano - Arquiteto e escritor
Pois não é que tive que voltar na repartição do atendente conversador? Pois é. Até gostei pois havia saído sem saber o resultado dos seus “trabalhos” em busca da virilidade perdida. Lembrou de mim assim que me viu e fiz a pergunta na bucha: – E aí, valeu a pena a jornada no cemitério? Recuperou a força do homem? – Se valeu o susto? Respondeu: – Mas claro, ficou até melhor que antes. Deu a bexiga lixa e eu virei um galo cego. Não podia ver nem bunda de sibite. Só que comecei a me meter com tudo que era mulher que aparecia e aí me compliquei de novo. Aí vem história, pensei, e fui me acomodando na cadeira. Meu novo amigo, vocês lembram, se dizia kardecista de mesa branca, ou seja, praticava um espiritismo nem um pouco ortodoxo, muito mais pros tambores da África negra do que para a racionalidade do mestre de Lyon.

Ele continuou: – Não é que de repente apareceu uma irritaçãozinha aqui, junto do meu nariz, e essa bexiga lixa foi crescendo e virou uma ferida feia? Gastei horrores com médicos e remédios e mesmo assim a chaga cresceu até ficar do tamanho de uma moeda de um real. Doía e coçava que só a gota serena. E era aquela coisa feia de ver, sanguinolenta e supurando constantemente. O jeito foi procurar ajuda por outros caminhos e foi o que fiz. – Já sei. Foi buscar a cura em um centro espírita, não é? – Mas claro! Voltei lá em mãe Balbina, santa mulher, já disse a você que sou da linha branca, não foi? Da corrente dos orixás. Fiquei pensando nos caminhos do sincretismo que levam a essa mistureba toda.
– E essa mãe Balbina, é a mãe de santo do terreiro? – Que terreiro que nada! Mãe Balbina é uma mulher séria. Sou kardecista, lembra não? Ela jogou uns búzios, queimou umas ervas e finalmente baixou o santo.

Aquele meu amigo novo sabia contar uma história. Interrompia, mexia em uma gaveta, olhava uns papeis e só depois retomava no ponto que havia deixado.
– O santo de cara reclamou da minha ausência: – Mô fio só aparece quando tá metido em arapuca, não é? Depois some do congá, nem lembra que precisa fazer as obrigações, prestar respeito aos santos de frente, entregar as oferendas...
– E a ferida? Perguntei, impaciente. – Pois então? Ele disse que não adiantava nada visitar os homens de branco. Aquilo foi, imagine só, uma flechada de um caboclo irado. – Isso é que dá, mô fio, sair dando em cima de tudo que é rabo de saia feito um pai de chiqueiro. Coração é terra que ninguém anda, mô fio já devia saber. Aquela cabocla ruiva de olhos verdes, olhos de cobra, de gente perigosa, guardou ódio do mô fio por ter sido abandonada.
– Fez catimbó pra mim? Perguntei. – Nem precisou fazer feitiço. Ela é muito protegida, as Marias estão com ela e com esse povo não se brinca.
– Virgem, minha mãe, mexi com Maria Padilha? – Pior. A santa daquela criatura é Maria do Cais, que não perdoa candonga com as filhas. Recorreu a um caboclinho doido pra agradar e ele flechou a cara do mô fio. Benção de Deus, porque ele queria mesmo era mandar vosmecê dessa pra melhor.
Não sei se aquilo tudo era verdade ou conversa mole, mas estava impressionado, confesso. Perguntei como a coisa tinha se resolvido.
– Mas era aí que eu queria chegar! Mãe Balbina perguntou se eu ia fazer o que ela dissesse sem discutir, e eu confirmei, claro. Aí pegou uns papeis velhos e sujos de jornal, mascou um pedaço de fumo e depois cuspiu aquela gosma preta em cima. Antes que dissesse amém ela sapecou aquilo como um emplastro em cima da ferida e disse pra não tirar, esperar que saísse sozinho. – Vou ficar com isso no rosto, minha mãe? – Vai. Até cair. Mô fio não quer ficar bom?
– Saí de lá pensando: tô frito e mal pago. Fui para casa e chorei. Medicamentos não deram jeito e essa gosma de fumo com saliva e papel sujo vai fazer o que? Vai gangrenar com a gota e eu vou morrer, acho que não mereço isso. Rezei pra Judas Tadeu, meu padroeiro, pra Cosme e Damião que eram médicos, para o doutor Bezerra de Menezes, pra irmã Scheila e até pra Ali Babá e os quarenta ladrões eu apelei no meu desespero.
– Acredite, pois vejo na sua cara uma certa incredulidade. Com os dias os pedaços de papel foram descolando e caindo um a um, e quando dei fé haviam saído todos.
– E a ferida, perguntei quase gritando e percebi que estava de pé. Curou?
– Se curou?
Ele se inclinou sobre mim e aproximou bem o rosto, mostrando com o dedo o canto do nariz:
– Veja, nem cicatriz!!!


Mas homem, cuidado…🤣🤣🤣🤣