A VOLTA DO CAPITÃO
Nilo Emerenciano – Arquiteto e escritor Falou no cão ele aparece.
Nilo Emerenciano - Arquiteto e escritor
Falou no cão ele aparece. Quem nunca ouviu essa frase tradicional? Pois não é que encontrei o Capitão depois de tantos anos? Ganhei um abraço carinhoso e o que entendi como uma repreensão:
- Andou escrevendo a meu respeito, não foi, camaradinha? você é fogo mesmo. Conseguiu dar um ar bonito às minhas besteiras. Agradeço haver poupado meu nome e mudado a patente. Convido para um café, pois meus dias de cerveja acabaram por conta da diabetes.
E lá estávamos nós, como antes, provando um café fumegante. Provoquei o Capitão, curioso por saber coisas novas.
– E então, o que tem feito?
- Ah, camaradinha, envelhecer é fogo. A gente perde o comando da vida. Andei tendo umas tonturas, nada demais. Com certeza foi devido à crise de abstinência. A médica sádica havia me proibido as coisas boas da vida: gordura e cervejas. A terceira coisa eu havia desistido há algum tempo, desde a morte da minha mulher. Só olho pro recrutinha vez em quando e converso com ele em respeito ao passado glorioso. Até fiz um pé quebrado:
Ah, pimba velha malvada em que estado te vejo com você em plena forma satisfiz o meu desejo já quebrei castanha assada e pata de caranguejo.
Rimos como bons velhos amigos.
Mas camaradinha, o mundo é das mulheres. Minha companheira partiu e aí as duas filhas assumiram o comando da minha vida. Acabou-se a paz. Nunca mais comi uma rabada, um pirão decente, um chambaril. Queijo de manteiga, nem pensar. Dia desses botaram uma mocinha para cuidar da casa e de mim. Camaradinha, quando vi as pernas da menina, a camiseta empinada com os faróis acesos e uma traseira de dar gosto, agradeci a Deus
– Você é bacana comigo, disse em prece. Besteira minha. Quando as feras – chamo de Rompe-ferro e Cospe-fogo – perceberam meu caqueado na cozinha e o interesse repentino pela arte culinária, despacharam a moça mais rápido do que técnico da série C.
- E as tonturas, Capitão?
- Pois é. As duas cobras caninanas cismaram que era encosto ou coisa do tipo. E me levaram para um terreiro lá na Zona Norte, em casa de uma Mãe Zeferina. A Mãe Zeferina me olhou, cercou, arrodeou, deu na minha cara umas baforadas de um charuto barato que fumava e falou que o meu caso era com o Bicho-Preto, um camaradinha que ia chegar à meia-noite.
E não é que meia-noite em ponto um sujeitinho que dissimulava por ali, com um jeito meio, vamos dizer, afetado, pulou de repente no meio do terreiro, a camisa aberta no peito, e gritou:
- Sou Bicho-Preto e comigo ninguém pode! Quero cachaça e charuto!
Camaradinha, confesso que me arrepiei.
- Já pensou, Capitão, onde você foi se meter?
- Então? Não é fogo? Lá no terreiro estavam dois candidatos a deputado. Haviam levado charutos, bebida e outras bajulações para mãe Zeferina. Bicho- Preto era exigente e não se deu por satisfeito:
- Quero um bezerro negro sem nenhuma mancha branca. E surututu! Querem ganhar a eleição e roubar o povo, não é? Pois sem bezerro e surututu não ganham!
- Camaradinha, tive vergonha em ver aqueles homens adultos se desmanchando em salamaleques pro tal do Bicho-Preto. Foi aí que ele pegou um galo que lhe passaram e mordeu a cabeça, mastigando e engolindo os miolos do bicho. O sangue escorria pelo queixo e pingava no chão do terreiro. O Bicho-Preto rodopiava, passava a mão nas partes das filhas de santo e depois virou-se em minha direção. Disse que eu era um liso, não tinha surututu nenhum, só encosto, e ordenou:
- Recebe aí, deixa baixar o santo, eu tô mandando!
Rompe-ferro e Cospe-fogo secundaram aquele arremedo de santo.
- Receba, receba!
- E aí, Capitão, você recebeu o santo?
- Se recebi? Camaradinha, você não me conhece? Sou fogo. Aproveitei e mandei a dieta às favas. Tomei o marafo da mão do amostrado, tomei um gole enorme, inventei que estava possuído de uma entidade chamada Galo-Cego, tremi pra lá e pra cá e me virei para as duas filhas de santo bem novinhas, uma beleza! E gritei:
“Ei meninas, as xoxotas agora!”
Elas responderam encabuladas: “Nós temos, mas não vamos dar”.
– Então virem a zibunda de fora, olhem aqui o papai como tá!
E apontei o recrutinha, animado como há tempo não se via. Do jeito que ele estava nem pata de caranguejo aguentava! O Bicho-Preto revirou os olhos e sumiu de repente. Mãe Zeferina correu pra dentro. Ficou só eu, Galo-Cego, pai-de-chiqueiro. Não é fogo, camaradinha? Acho que eu estava possuído de verdade...
Nem estiquei o assunto. Tive medo do que podia vir depois dessa. Afinal, era o Capitão, mais afiado do que nunca...