- Pe. Matias Soares Pároco da paróquia de Santo Afonso M. de Ligório-Natal/RN
A nossa época prostituiu a verdade. Sem conhece-la, não existe liberdade (cf. Jo 8,32). Sem liberdade, a dignidade de cada ser humano é ultrajada. Deste modo, renega-se a ação criadora, redentora e santificadora da Trindade. Ofendendo a Deus, negamos a fé. Sem fé, não há salvação, sem esta última, não tem-se a plenitude da vida. Sem a esperança desta totalização da vida, o que resta é o não senso, o ocaso e o vazio angustiante. A Era da pós-verdade não é companheira do objetivo, do real e da realidade. O digital tomou o lugar da adequação da inteligência aos fatos, aos acontecimentos e ao que faz parte do concreto. Tempo e espaço estão confusos. O próprio sujeito está indeterminado. A massificação intersubjetiva, com interfaces não identificáveis, tem lançado o potencial de dominação para as inteligências artificiais. Tudo isso tem gerado medo, inquietações, projeções e muita ansiedade individual e coletiva.
O Papa Francisco nos provocou, em muitas circunstâncias, sobre a corrupção das nossas consciências. Ela é antes de tudo uma ‘situação existencial’. Chega às estruturas, porque antes passa pelas pessoas. As instituições corrompidas estão constituídas por indivíduos corruptos, ou seja, pessoas que fecharam a sua condição humana para acolher, no amor, a verdade que Deus revela às mentes e aos corações de cada ser humano. A verdade é dom. Mas é também realização sublime da liberdade. Não compreender o fascínio antropológico desta constatação é lançar-se ao calabouço construído pela mentira, que gera inveja, perseguição, vaidades e escuridões da alma. A verdade tem que ter importância para o ser humano, antes de tudo, porque sem ela não há possibilidade para o conhecer-se a si mesmo. A sua correspondência com a realidade é um valor absoluto. O encantamento por Jesus Cristo tem que nos levar a essa edificação do nosso “Castelo Interior”, como nos ensina magistralmente Santa Teresa D’Avila. A religião é um meio de ligação com o transcendente. Mas, ela passa antes pelo ‘transcendental’. Os limites da razão não são os inimigos da religião, mas na modernidade precisam ser companheiros das três virtudes teologais, a saber: fé, esperança e amor.
O cristianismo identifica-se com a verdade. O seu protagonista revela-se como Aquele que é a verdade (cf. Jo 14,6). Ela não é só a adequação do intelecto ao real, a busca pelo conhecimento último das coisas; mas, a verdade que parte de um ‘encontro’ que transforma a vida, a existência, o estilo e forma de ser; já que “existem razões que a própria razão desconhece” (cf. B. Pascal). A integração com a verdade nos faz ‘outros cristos’. Homens novos. Somos performados pela palavra e a obra do Mestre e Senhor, Jesus Cristo. Na existência cristã temos que tomar muito cuidado para não nos tornarmos só religiosos, sem sermos autênticos cristãos. A nossa história nos trouxe, enquanto Igreja, até aqui. Contudo, essa imersão na cultura pós-cristã tem que nos alertar para os desafios emergentes que estão postos e a nos asfixiar. Para que a transformação aconteça - a conversão missionária - é urgente a vivência da radicalidade evangélica, que é diferente de “radicalismos fundamentalistas”. Aquela nos aproxima dos outros, com suas diferenças, ensejando acolhida, proximidade e integração de todos. Nos torna compassivos e servidores do Outro. Este completa-me com suas possibilidades e subjetividades. Não o rejeitamos, nem violentamos, nem oprimimos, tendo em vista a busca alucinada pela afirmação da vontade de poder e a superação dos próprios ressentimentos.
A Igreja não pode ser traidora da verdade. A validade dos seus atos não pode está condicionada pelas narrativas obscuras de quem tem o poder, às vezes, opressor e causador do divórcio entre o amor e a justiça. Essa relação sinérgica é imprescindível na busca permanente pela verdade. Isto não acontecendo, a dignidade das pessoas é pisoteada e jogada no abandono. Formar trupe com a corrupção existencial é ateísmo prático. É sufocar os valores cristalinos do Evangelho e do Reino de Deus, que colocam no centro da ética cristã a vivência do amor por cada ser humano. Não atentemos contra a nobreza das Bem-aventuranças, por exemplo. Fazendo assim, sujamos a nossa sublime vocação à santidade. Onde não há amor pela verdade, não há lugar para Deus. Triturá-la, rejeitá-la e manipulá-la, em nome do abraçar a fumaça das políticas do carreirismo, é estultice. A amnésia acerca dos elementos ontológicos e categóricos do que somos e para quem somos, pode nos tornar, não humanos, mas seres profundamente desumanos. Amantes da Instituição, mas nocivos ao bem das pessoas. Enquanto Igreja, os nossos piores inimigos podemos ser nós mesmos, quando não fazemos o discernimento do nosso estilo de vida, a partir do encontro pessoal com Jesus Cristo. Bento XVI certa vez afirmara: “Os piores inimigos da Igreja estão dentro dela”. A falta de testemunho nos torna frágeis e sem credibilidade. Para nós, a força daquele não é crendice. É vida. É coragem de anunciar e denunciar, mesmo quando os intentos destrutivos batem à nossa porta, com voracidade e covardia.
A contaminação pelo mundanismo espiritual está na Igreja. Está sufocando-a. A mentalidade principesca, burocrática e estéril está a olho nu. Todos veêm, mas poucos enxergam. Pois, ‘em terra de cego, quem tem catarata precisa ser rei’. O Papa Francisco tem denunciado o clericalismo. O despotismo e este último são primos. Estão muitos presentes em ambientes hierárquicos e das cortes. O poder tratado como exercício de força que não serve, mas apodera-se das liberdades, é obsceno e escandaloso. Também é ansioso e covarde. É vingativo e persecutório. Por isso, não quer sociedade com a verdade e a honestidade de conduta. Brinca com as fantasias dos desavisados, jogando com seus egos. No contemporâneo, temos que ficar muito atentos a todos estes fenômenos psicológicos e de novas ordens sistêmicas que acontecem, seja nos ambientes civis ou eclesiais. O antídoto está nas opções que fazemos cotidianamente pela verdade que está em nós. Santo Agostinho já nos lembrava ao afirmar que o seu coração viveu sempre inquieto, enquanto não encontrou essa verdade em si mesmo.
Enfim, a liberdade, para nós cristãos, está contida na fidelidade à pessoa de Jesus Cristo (cf. Gl 5, 1-6). Não há outro caminho. O que vem depois disto, é fumaça das vontades humanas, com sua tendência para fazer o mal, evitando fazer o bem. Assumindo escolhas incoerentes com a vocação e a missão para as quais foram consagradas, antes de tudo, pelo batismo. A verdade para cada um de nós deve importar. Não esqueçamos! Debochar da verdade é zombar de Deus. Subjugá-la em nome da política da conveniência, sem o zelo pela justiça, é uma forma pervertida de dizer ao mundo que não crê, não ama e nem espera. O mundo pós-moderno é um lugar profundamente carente desta Verdade, que bem entendida, nos levará sempre a Deus. A Igreja, com os seus sujeitos eclesiais, querendo ser sal e luz para o mundo, não pode entregar-se por poucos interesses individuais ao que tira a sua vitalidade para ser sacramento universal de salvação. Os desafios são enormes, mas o Espírito do Senhor, é o único da Verdade. Assim o seja!